COMPRO, LOGO EXISTO

Autor: Professor Me. Marcos Oliveira

Do ponto de vista acumulativo a sociedade moderna vai muito bem. As formas rudimentares de produção, foram substituídas por novas formas de produção em massa. Daí, ser possível afirmar que nunca na história humana produzimos e consumimos tanto como em nossos dias.

Porém, do ponto de vista moral, tal evolução tecnológica para o consumo pode ser fortemente questionada, pois à medida que a sociedade consumista se enriquece de capital, vemos cada vez mais em seu seio o recrudescimento de manifestações de agressividade, inveja, ódio e racismo, para citar apenas alguns dos frutos colhidos em nossa época.

Paradoxalmente, mesmo com todo o capital que flui e é gerado, o ser humano parece estar cada vez mais longe do estado de felicidade prometido pelo nosso moderno e científico “estilo de vida”. Por que será que em meio a tanta riqueza e evolução científica o homem ainda não é feliz?

A própria pergunta traz embutida a resposta. Só podemos atingir a verdadeira felicidade, desenvolvendo nossas muitas qualidades humanas, quando aprendemos “ser” renunciamos a ânsia de “ter”, fazendo isto nos distanciamos do valor das coisas e aprendemos valorizar aquilo que é humano.

Dentro do regime consumista, todos são avaliados de acordo com suas posses, ilusoriamente “ter” é confundido com “ser”, assim o ajustado pensa que existir é sinônimo de possuir. Porém, é importante ressaltar que à vontade de possuir coisas materiais dentro da visão neurótica atual esconde um elemento muito importante e, justamente esse elemento é à base de grande parte de nossos desconfortos existenciais.

Ao comprar indiscriminadamente e consumir como um louco, o indivíduo tenta ser “amado” através do objeto comprado, no fundo o neurótico não compra meramente o “objeto”, compra mais a “carga de fantasia” projetada no objeto.

Para ilustrar o que quero dizer, ofereço um simples e direto exemplo: Se fossemos leiloar uma caneta normal quanto conseguiríamos arrecadar? Certamente não mais do que alguns centavos. E se tal caneta fosse anunciada como a caneta predileta usada pelo renomado e falecido cantor Elvis Presley? Após tal informação sem dúvida nenhuma uma quantia incomensuravelmente maior do que o valor de fato seria arrecadado. Nesse exemplo, a caneta é supervalorizada por ter pertencido a uma celebridade. Portanto, não é o objeto e sim a “carga de fantasia” projetada sobre ele que faz a diferença.

Ainda sobre o exemplo da caneta, a verdadeira razão pelas quais alguns dariam tudo para tê-la, aparece implícita, disfarçada de inofensiva excentricidade. Quem compra a caneta do cantor Elvis Presley, pensa inconscientemente comprar o próprio Elvis Presley, ou para sermos mais exatos, o que ele representa como símbolo Pop.

Como ídolo Pop tal cantor é muito desejado, e aquele que hipoteticamente viesse a possuir uma coisa desta celebridade, usufruiria (pelo menos no campo das fantasias internas) parte de seu prestígio e fama, seria amado em transferência por todos que veneram e consideram importante o famoso cantor.

No fundo, o comprador deseja fortemente ser desejado e amado por muitos, para conseguir isto, utiliza uma estratégia mercantilista que dá suporte a doce ilusão de existir a partir do desejo do outro. Na teoria de consumo a manipulação do “desejo” humano e sua conseqüente utilização com finalidades comerciais, configuram uma das razões básicas para o sucesso expansionista da sociedade de consumo.

Aquele que compra um bonito carro importado, certamente não o faz pelo seu valor utilitário, inconscientemente visa na verdade despertar o desejo alheio, pensa em ser amado e desejado através daquilo que possui materialmente.

Toda estrutura consumista do atual sistema de coisas fomenta em grande escala a ilusão de “ter” para ”ser”, e à medida que os indivíduos se enchem de mercadorias, vão ficando cada vez mais vazios no sentido existencial.

A mensagem implícita por trás das diversas propagandas do atual sistema de consumo é a de que, se o vivente consumir suas infinitas mercadorias, terá assim encontrado o antídoto perfeito para o seu tédio existencial. Tal oferta, na verdade, é um engodo, pois o estratagema do “sonho de consumo” só favorece os mecanismos de fuga pautados nos “deslocamentos” e “projeções livres” do indivíduo neurotizado.

Fica evidente que à vontade de consumir muitas vezes está além da racionalidade. Podemos dizer que, de forma generalizada, é o viciado quem faz o vício e não o vício o viciado. Nos diversos vícios e manias da modernidade, escondem-se projeções inconscientes que acabam por revestir, enganosamente, as fabulosas mercadorias do sistema. Quem toma um “banho de loja” num badalado shopping pode, na verdade, estar usando desse excesso de consumo como um meio de evitação para não realizar uma reforma no seu mundo interno; é mais fácil “trocar de camisa” do que trocar certos aspectos indesejáveis da personalidade. Ao mesmo tempo, ao ser visto comprando sente-se poderoso e, portanto, desejado pelos outros, assim, nega-se sentimentos internos de insignificância e de inferioridade, e, às expensas desses recursos fantasísticos, cria-se uma prazerosa ilusão de reconhecimento.

Certamente foi tal constatação, que fez Freud escrever:

 

“É impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões de avaliação, isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida”. (Freud, 1974, p.73)

 

O neurótico tenta, pela via do consumo, existir e ser aceito como pessoa, pois suas compras não são utilitárias, mas sim uma manifestação da pobreza de seu universo interno, fator esse que lhe obriga constantemente a recorrer à riqueza e à opulência do mundo externo. Se o que comprou perde sua função como símbolo de status ou de investimento de seu capital, fica desesperado e, por vezes, muda drasticamente seus conceitos estéticos e empresariais. Uma consciência autoritária e invisível obriga o neurótico a se ajustar às modas e manias passageiras, cria internamente terríveis incertezas que acabam sendo usadas pelo sistema como armas de controle e manipulação ideológica.

Tentando fugir de suas dúvidas existenciais, o dominado acaba por comprar “certezas falsas”, o que o leva a um processo progressivo de desumanização e, por fim, o neurótico acaba sendo “coisificado” pelo sistema de consumo, tornando-se desta maneira, mais uma mera mercadoria da sociedade capitalista.

 

Prof. Marcos de Oliveira

 

Bibliografia

FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, 2002.

A VISÃO DE HOMEM EM FROMM

Autor: Wagner Amodeo

 

A visão de Homem em Fromm Resenha realizada para o Curso de Formação em Psicanálise da SBPH

O presente trabalho foi elaborado a partir do artigo “O conceito frommiano do Homem” do Prof. Marcos Oliveira. Utilizaram-se outras referências de Erich Fromm indicadas ao final deste trabalho.

SOBRE O ARTIGO

O autor demonstra os principais conceitos de Erich Fromm sobre a concepção culturalista e humanista do homem. Através de citações de Fromm e de seus próprios comentários, busca contrapor, para esclarecer, as teorias de S. Freud e Fromm, sobre o homem em suas origens ontogênicas e filogênicas. Destacando que Erich Fromm não contradiz os princípios básicos da psicanálise, antes amplia o que Freud já vislumbrava em s

ua segunda tópica.

RESENHA

O artigo ressalta que apesar de Freud conjeturar a importância da cultura, da sociedade, na formação do homem (inclusive o conceito do “superego” é dependente dessa concepção), ele permanece atrelado a uma visão fisiologista e mecanicista, especialmente quanto à libido, fundamento de sua teoria psicanalista. Serão outros psicanalistas como Adler, e no caso em foco, Erich Fromm, que caberá uma revisão crítica e um redirecionamento dessas propostas iniciais. Fromm não negará a importância instintual, e pulsionais, dos desejos sexuais, e do mesmo modo, enfrentará o conceito chamado “desejo de morte” (Tanatos em oposição a Eros), entretanto fornecerá uma visão mais humanista e social a essas pulsões.

Fromm defende não existir qualidades boas ou más inatas no ser humano. Propõe, sim, existir uma agressividade instintual na natureza humana, condição de sobrevivência, mas será a aculturação a responsável pelo direcionamento desse instinto para o “bem” ou para o “mal”, ou seja, para um espírito construtivo ou destrutivo. Esse direcionamento estruturado forma um sistema orientacional que Fromm denominará como caráter biófilo ou necrófilo, respectivamente.

Essa estrutura de caráter é parcialmente fixa e formada na infância. O que implica deduzir que ainda poderá ser alterada, mesmo que não o seja totalmente.

A visão frommiana indica um ser, que ao desejar ser plenamente livre em seus instintos é contido por seu caráter. O homem é um ser situado, não “flutua livre”. Para Fromm, a liberdade é tomar consciência de sua contingência, é entender suas limitações e possibilidades de desenvolvimento apesar de parcialmente contido.

Se essa consciência inexiste, ele se frustra e ao estar frustrado se desumaniza, sente-se impotente e poderá desenvolver uma destrutividade compensatória. A consciência de seus limites é que o tornará humano e que lhe fornecerá forças para buscar outras formas de desenvolvimento, modos criativos e construtivos, individualmente e coletivamente.

Essa visão em Fromm que o distancia, sem se contrapor, as teorias freudianas. Retira, sem anular, a importância do instinto, que são as bases orgânicas, e releva as bases sociais na formação do caráter, em uma espécie de requalificação das pulsões.

Com isso será possível, mais do que qualquer outro pensador, estabelecer uma ponte de aproximação entre Freud e Marx. Tornar o homem consciente da história social pré-existente, de sua própria história individual e, simultaneamente, gerando condições para a transformação de uma história futura. Permite, a partir de um entendimento do indivíduo, incluir a compreensão da formação dos valores coletivos e abarcar igualmente o sentido contrário.

Defini-se essa visão humanista como sócio-biológica e abre-se o campo para uma possível sócio-análise.

A “cura” para a destrutividade compensatória será o desenvolvimento do potencial criativo e construtivo com muitas implicações nos sistemas educacionais dos núcleos familiares aos institucionais.

Esse ser consciente e criativo, buscando seu desenvolvimento e contribuindo ao bem-estar coletivo é o ser produtivo. Sempre que a sociedade, em especial a atual sociedade de consumo, embotar o desenvolvimento desse potencial criador e, portanto, também, a possibilidade da reflexão crítica, estará gerando situações neuróticas e destrutivas.

No dizer frommiano os homens, e a sociedade, estarão desumanizando-se e tornando-se seres autômatos, “coisificando-se”. A necessidade atual de constante ocupação no consumismo e nos entretenimentos demonstraria a demanda para não perceber a solidão existencial. Essa situação levará o homem a destruir-se, incluindo-se possíveis conflitos bélicos de grandes proporções (há de se lembrar o contexto da Guerra Fria de quando foram produzidas as principais reflexões de Fromm).

Fromm não descreve o ser humano como bom ou como mal intrinsecamente. Diz que todos possuem qualidades, ou momentos, de maior destrutividade ou construtividade, contudo pende para a possibilidade de uma sociedade mais cônscia e harmoniosa que inevitavelmente levaria a substituição de um caráter social necrófilo, atualmente preponderante, para outros valores mais construtivos que colaborariam para uma sociedade mais justa e harmoniosa.

Antes que essa posição possa ser taxada e diminuída com uma acusação de romântica e de exacerbada utopia na construção de um novo sistema social, ou de ser, ao contrário, uma posição pessimista que só vê manipulação e destrutividade na atual sociedade, será o próprio Fromm que indicará as possibilidades da “descoisificação” da vivência humana, tornando o homem potencialmente desenvolvido e capaz, portanto, de escrever a sua própria história, individualmente e coletivamente. Um homem capaz de decidir livremente.

Fromm pode ser um idealista com consciência da realidade, utópico não, pois demonstra as possibilidades reais dessa possível transformação. Pessimista nunca, pois todo humanista é necessariamente otimista, e indica os caminhos da construção desse homem através da construção de uma visão crítica, reflexiva, criativa, produtiva, onde a psicanálise passa a ser relevante protagonista na compreensão da individualidade, no autoconhecimento, concorre simultaneamente para a condição única e transformadora da sócio-análise.

Bibliografia consultada

FROMM, Erich. A descoberta do inconsciente social. Tradução: Lucia Helena Siqueira Barbosa. São Paulo: Ed. Manole, 1992.

—. Ter ou ser? 4ª. Tradução: Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Ed Guanabara, 1987.

OLIVEIRA, Marcos. “O conceito frommiano do Homem.” São Paulo: SBPH.

NOVOS HORIZONTES EPISTEMOLÓGICOS NA PSICANÁLISE

Autor: Leonor Pajaro Grande Ferreira

 

Há um encadeamento lógico entre esses itens, que parte da ontogenia ou ontogênese, importante processo de desenvolvimento e organização do ser humano, o qual é analisado, em seguida, em sua capacidade de produzir cultura, de transformar o meio ambiente em que vive e, simultaneamente, de se auto-transformar; na seqüência, o autor trata de como ocorre e se constitui o processo identitário, trabalhando conceitos importantes, especialmente o de filtros sociais e de inconsciente social, sendo este fundamental para a compreensão do item que se segue. Nele o autor trata da forma material, concreta na qual esse inconsciente social se expressa, ou seja, da estrutura ideofísica da sociedade. Concluindo este encadeamento que vai do particular ou individual para o geral ou coletivo, há uma interessante analogia entre parapraxia e antinomias sociais.

A pretensão maior do autor, por ele colocada como algo ambicioso e que se encontra expressamente formulada no parágrafo final, da parte introdutória de seu trabalho, é a de “averiguar como se dá o processo básico de aculturação do ser humano”. Para tanto, ele se utiliza de dados recentes extraídos da Filosofia, Sociologia, Antropologia e outras disciplinas humanas afins, de forma conjuntiva, tentando “ampliar o alcance das luzes pioneiras estabelecidas por Freud”.   A pretensão do autor se justifica pela importância de que o sucesso no processo de aculturação se reveste, para a coesão e manutenção do sistema social, sua estabilidade e funcionalidade harmônicas. A aculturação é, pois, esse processo dinâmico que embora se desenvolva mais intensamente na infância e adolescência –aculturação primária e secundária-, implanta no indivíduo um sistema orientacional que perdura durante a vida toda.     Em todos os itens mencionados, os respectivos conteúdos são expressos com muita lógica e clareza  e  as  referências  aos  pensamento  de  outros  autores  vêm  sempre  seguidas  das

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citações textuais dos mesmos, extraídas das obras constantes da bibliobrafia usada, de modo a oferecer o necessário embasamento teórico para as afirmações feitas.

De igual maneira, as críticas e os questionamentos formulados pelo autor, encontram, também, sua fundamentação e apoio, nos fragmentos que ele oferece ao leitor ou estudante, para que se informe e, livremente, possa avaliar.

Conquanto o ponto mais valorizado pelo autor seja o referente à aculturação, escolhi enfocar, mais intensamente, os itens que se referem, respectivamente, à Estrutura Ideofísica da Sociedade e às Antinomias Sociais, pelo que trazem de novo e interessante, no meu entender.

Começando pelo termo, Ideofísica, ele é utilizado pelo autor ao referir-se à estrutura ideofísica da sociedade, que designa os “aspectos físicos e concretos da estrutura social que abrigam, simbolicamente, as intenções sutis e imanifestas de determinada configuração social”.  Também designa, todo o aparato sistêmico usado no ajustamento dos indivíduos, inclusive  ajustadores e consequentes ajustados, que são condicionados a reconhecerem, de forma inconsciente, a topografia subliminar do poder. Esse reconhecimento os leva a uma adequação silenciosa e coercitiva, a um dado posicionamento social, por causa da ideofísica, que é a “exteriorização da vontade de potência”. Mais do que apenas uma coisa física, trata-se de algo organizado por uma subjetividade, a partir de idéias, para comunicar aos indivíduos

É feita uma interessante analogia entre a doença psicossomática, que pode se ma-nifestar no indivíduo, quando o inconsciente vaza na estrutura física, e a intenção inconsciente que se expressa e materializa na ideofísica. Os locais visíveis da sociedade, diz o autor, “são espelhos que refletem o nosso narcisismo grupal”, e acrescenta: “vemos na verdade um esboço topológico de nossa hierarquização estatutária”, porque os locais simbólicos são primeiramente hierárquicos: quem pode, quem não pode; quem legitimamente deve, quem não deve. O livre trânsito ou não, por exemplo, em dado lugar vai depender dessa estrutura ideofísica. Há formas de excluir simbolicamente, mas, isso é geralmente imanifesto ou pouco sentido pelo homem comum.

Como a racionalidade social é prisioneira da ânsia interna de domínio, a estratificação socioeconômica vai sendo imperceptivelmente moldada por uma gramática social, parcial, e a escrita social resultante é sempre “a palavra de quem domina” .

Todavia, a estrutura ideofísica não se faz presente meramente para comunicar. Ela tem também uma força modeladora que possibilita o ajustamento do indivíduo, de modo que  aceite a legitimidade que se pretende seja aceita e, só depois da aceitação daquela estrutura como  significativa  para  ele, é que terá a ação social adequada.

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Há, portanto, uma ação comunicativa, modeladora e criadora de limites, não percebida diretamente, sendo a escrita cultural, “sempre a palavra de quem domina”.

Neste processo, a obediência é de fundamental importância, é o princípio básico da ordem social e de sua manutenção, sendo, também, fruto da mencionada modelagem.

Em conseqüência disso tudo, o indivíduo comum não valora: passa , também, a aceitar como própria, a valoração que lhe é dada.                                                 .

Outro aspecto igualmente interessante a ser pontuado é o que se refere à idéia da parapraxia de Freud, aplicada ao social. Embora certa topografia estatutária tenha sido estabelecida  como mapa da racionalidade oficial, ela“ não está livre de um entorno contraditório” que, no dizer do autor, “age como margem dialética de novas racionalidades, prontas paranascer” .

Ao tratar das antinomias sociais, o autor coloca que o termo antinomia significa, etmo-logicamente, conflitos de leis. Ele foi utilizado por Kant para “referir-se ao conflito em que a razão se encontra consigo mesma por causa de sua forma peculiar de estabelecer certos procedimentos ca-tegoriais”.

Contradições entre discurso e prática social revelam a existência de pontos nervosos, de modo análogo aos atos falhos individuais. São “contradições sociais que podem ser lidas como verdadeiros atos falhos coletivos”. Para ele, tais atos, “escondem uma intencionalidade secreta que vaza como sintoma”. Esses atos não são tão falhos como se poderia supor, pois, “mascaradamente são muito bem sucedidos em perturbar a cadeia lógica de pensamentos”, são antíteses que podem conduzir à mudança, à elaboração de  uma nova síntese.
AS ANTINOMIAS SOCIAIS SÃO BASTANTE REVELADORAS DE INTENÇÕES INCONSCIENTES, PODENDO SER PERCEBIDAS NO PRÓPRIO DISCURSO OFICIAL  COMO: “BRECHAS JURÍDICAS, EQUÍVOCOS SOCIAIS, DESCASOS  POLI-TICOS”. EM  DISCURSOS  COMO  O  PROGRESSISTA,  POR EXEMPLO,  A ORDEM  É  COLOCADA COMO O MAIS IMPORTANTE PARA SE CHEGAR AO PROGRESSO. PORÉM, -ALGO DE PERTURBADOR SE EXTERIORIZA NO AMBI-ENTE  SOCIAL QUE PARECE  DESMENTIR O PROGRESSO, DESMONTAR A ORDEM. NA REALIDADE,  A  IDÉIA DE ORDEM E PROGRESSO É MAIS UMA FORMA DE DISCRIMINAR CLASSES DO QUE, PROPRIAMENTE, UM  PLANO IGUALITÁRIO, COMO  O  DISCURSO SUGERE. O QUE PODE  SER LIDO NAS ENTRELINHAS DAS CONTRADIÇÕES  É ORDEM PARA TODOS E PROGRESSO PARA ALGUNS, POIS, “ENQUANTO UMA MAIORIA DE DOMINADOS PERMANE-CE EM ORDEM,UMA MINORIA DE DOMINADORES USUFRUI, DE FORMA INVEJÁVEL, UM SUBSTANCIAL PROGRESSO” .
Buscando melhor explicitar a noção teórica de antinomia social, o autor se utiliza de um exemplo paradoxal que extrai da própria Constituição Brasileira. Nela está inscrito que “todos são iguais perante a lei”. Todavia, há setores da sociedade que são privilegiados por leis complementares, decretos, resoluções e outros expedientes normativos específicos,que asseguram  aos  seus  membros  prisão  em  regime diferenciado,  julgamento  por  tribunais

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especiais, reforma, aposentadoria compulsória e demais situações especiais. O autor entende  que  essa  antinomia  social  é  reveladora da circularidade da relação entre normas sociais e poder. Que, em sentido genérico, há uma lei para todos, mas, no sentido prático, o  corporativismo é quem vai criar  a  lei ou as exceções.  Se o indivíduo  não  tiver condição de intercâmbio com certos ambientes, ficará certamente excluído desse tratamento.

É apresentado, ainda, outro exemplo de antinomia social, bem familiar a todos nós, que é o da titulação de doutor a membros de determinadas categorias profissionais, mesmo sem que haja a correspondente formação acadêmica, inclusive, a integrantes de classes sociais mais abastadas ou socialmente mais valorizadas, em certas circunstâncias. A aceitação natural e indiscutível dessa forma de tratamento é considerada pelo autor como “ato de sujeição imposto informalmente às classes dominadas”. Tal titulação,  aparentemente inofensiva e despretenciosa, significa que o indivíduo em causa é detentor de certo status, goza de prerrogativas e privilégios que outro indivíduo não tem e que, de algum modo, se encontra ligado ao poder. .

Com relação à estabilidade institucional e a sua exteriorização topológica ideofísica, o pensamento do autor é de que são simplesmente ilusórias e “visam transformar as normas humanas em fatos naturais” . Com isso torna-se possível exercer maior e melhor controle sobre as massas e “à medida que o poder em exercício consegue naturalizar as normas sociais e as cosmovisões, não é preciso nem mesmo o uso da força direta, para exercer o domínio”: a força inercial dos dominadores, uma vez internalizada, pode se transformar em motivação para permanecer em um quietismo que o indivíduo acha natural. O autor ressalta que, “Quanto mais uma forma de poder naturaliza suas regras sociais, maior é a sua sustentação…” Existe uma instrumentalidade tão grande nisso tudo, que o individuo será até capaz de lutar, para defender aquele que o domina.

O autor concorda com Hobbes quando este diz que “a razão é impotente sem o medo e o terror”, pois, mesmo quando ela não consegue levar o individuo ao convencimento, ele acaba por aceitar dada situação, não porque seja racional, mas, por causa da força. Assim, “por meio da aceitação não crítica ou inconsciente, grande parte dos dominados justifica reativamentetudo aquilo que lhes é imposto”.

Para ele, há um “jogo quase infinito de intencionalidades conflitantes que se escondem por trás da pretensa unidade racional das chamadas sociedades civilizadas”. Em uma mesma sociedade coexistem diversas racionalidades e muitas linguagens. Embora o poder crie certa ilusão de um monolinguismo coletivo, “O que de fato existe é um plurilinguismo racional, a realidade social pode ser dita de diversas maneiras”.

Dentro de um contexto histórico e social específico, existem muitas classes e sub-culturas, que obrigam a fazer outras leituras, muito além da gramática social oficial.  Por isso,

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o autor alerta e recomenda: “a Psicanálise moderna precisa aprender a ouvir o silêncio dos excluídos que se torna audível no grande número de crises da modernidade e em todos os atos falhos sociaisque revelam formas lacunares ativas e perturbadoras”.

Assim como o que é reprimido, recalcado, em nível individual, tende a voltar perturbando a consciência, também em nível coletivo, “a intenção criminosa de exclusão, perpetrada pelas classes dominantes, retorna como perturbação da ordem social”.

O autor afirma que, estruturalmente, não podemos nos livrar de todas as antinomias sociais, e, como as diversas racionalidades existentes no conjunto social fomentam o seu dinamismo, ele entende que: “sempre existirá o embate de múltiplas intencionalidades divergentes”. Entretanto, uma leitura cuidadosa e profunda deste paradoxal fenômeno, poderá atenuar seus efeitos destrutivos.

Conquanto para o autor, os psicanalistas pareçam sofrer do mesmo mal dos filósofos, ou seja, psicanalisam muito o inconsciente, mas, não se propõem a mudá-lo de forma efetiva, fazendo uma análise social das causas que o afetam, seu trabalho se encerra com um posicionamento positivo e de certo modo esperançoso, na possibilidade de mudança de rumo da humanidade.

Assim, com tal disposição e, parafraseando Marx, ele afirma: “Os psicanalistas já interpretaram demais o inconsciente, cabe-nos agora, transformá-lo” .

Ao finalizar esta resenha devo dizer que, embora tenha me aprofundado em apenas parte do trabalho do autor e não a mais importante para ele, porém, no meu entender a mais original, o texto foi lido e estudado em sua totalidade. Isso me permite dizer que o objetivo do autor foi atingido. Ficou clara para o leitor/estudante a importância dada à “montagem” do ser humano e de como ela se processa; o papel e a importância da cultura nessa construção, através de seus agentes culturais primários, secundários e das instituições sociais, dos signos, símbolos e topologia ideofísica, entre tantos outros fatores.

Também ficou evidenciada a valiosa contribuição de ciências como a Filosofia, a Antropologia, a Sociologia e outras afins, para o entendimento da construção do sujeito humano, bem como, para levar o leitor/estudante a perceber que não é suficiente o estudo ou pratica de uma analise sob a ótica do Complexo de Édipo, como representação da Psicanálise Tradicional. É imprescindível avançar mais além!

Em que pese , indiscutível genialidade de Freud, ele não poderia ultrapassar o “máximo de consciência possível” de seu tempo e, como produto de um meio sócio-cultural e histórico livrar-se, de modo absoluto, da influência gnosiológica de sua época, ou seja, do predomínio de uma visão biologizante,  de um paradigma anatomofisiológico e evolucionista aplicado à natureza, ao pensamento, ao indivíduo e ao social.

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Mesmo assim, como o autor mostra em seu trabalho, Freud deu passos decisivos para o conhecimento da mente humana, ainda que de início defendesse teses que, atualmente, não mais se sustentam. Contextualizando o surgimento dessas teses, com o cuidado e responsa-bilidade devidos, o autor aponta e critica, entre outras, idéias como as ligadas à existência de um “inconsciente filogenético”, herdado pelo indivíduo, muito próximo do “inconsciente coletivo” de Jung, a universalização do Complexo de Édipo e a utilização do homem burguês de Viena e de seu tempo, como modelo para todo homem.

Concluo, assim, esta resenha com a citação de parte do fragmento apresentado pelo autor, na abertura de seu trabalho, que expressa bem seu pensamento, ao qual também me filio:

Para executarmos uma verdadeira Psicanálise do espírito humano, é necessário examinarmos profundamente o campo de formação de tal “espírito”, ou seja: a sociedade . O campo social é a área de conexão entre a comunicação e a ideação, portanto, foi nesse ambiente universal, de interação entre o individual e o coletivo, que a vontade se solidificou, como uma ponte entre o animal e o homem”. (grifo meu)

 

        “N O V O S   H O R I Z O N T E S

         E P I S T E M O L Ó G I C O S

           N A   P S I C A N Á L I S E

                                                           Resenha feita pela aluna

                                                                Leonor Pajaro Grande Ferreira

O CAÇADOR INFIEL E O DRAGÃO

Autor: Prof. Me. Marcos de Oliveira

Numa terra distante, num tempo onde homens, mulheres e dragões disputavam um lugar ao sol, conta-se que uma intrigante história se deu. O núcleo desta história dramática envolvia um afamado caçador de dragões e o último dos dragões vivos daquela época mágica.

Estando diante do último dos dragões, o experiente caçador não foi capaz de dar-lhe um fim. O ser mitológico era colorido e belo, tão belo que pôde conquistar o bem-querer de seu inimigo natural. Apaixonado por esta extasiante e inusitada beleza, ao invés de matar o dragão, o caçador leva-o para sua casa. Estava decidido: além de preservar a vida desse ser mítico, iria morar junto com o mesmo até o seu último dia de vida.

Se a história ficasse congelada neste instante, teríamos o conhecido final romântico: “… e viveram felizes para sempre”, porém, o tom trágico deste conto se manifesta, quando, sem motivo aparente, o dragão acaba por comer seu distinto amante.

Um pouco antes de por fim à vida de seu companheiro, o dragão resolveu justificar com as seguintes palavras o seu ato:

– Perdoa-me pelo que te farei agora. Não te mato por falta de apego. Ao contrário disto, sinto-me muito apegado a ti. Porém, não posso negar a minha mais íntima natureza. Sou um dragão, por isso, propenso naturalmente a comer caçadores. Por seres um caçador, devo te devorar. Não posso ser infiel a minha natureza, meu destino é comer-te.

Um fim trágico, para uma história aparentemente tão bela!

Inventei este conto para ilustrar os caminhos habitualmente tortuosos da paixão.

Por meio da antagonia imaginária óbvia que existe entre um caçador e um perigoso e traiçoeiro dragão, intenciono ilustrar a abismal diferença entre o “amor” e a “paixão”.

O caçador do conto tornou-se infiel a si mesmo quando foi seduzido pela beleza hipnótica do dragão. Toda sua carência torna-se evidente na figura de seu amor inusitado pela fera. Por causa deste autoengano não foi capaz de discernir o perigo de sua paixão; morreu não por causa da índole da fera, mas sim, por desconhecer sua própria índole.

Análogo ao caçador de nossa história, o apaixonado é sempre um ser que se autodesconhece. Seu apego exagerado e normalmente repentino aos objetos de seu “amor”, não nasce da vontade simples e humana de querer compartilhar o melhor de sua vida com o outro, bem diferente disto, nasce do desespero de ver-se só.

Semelhante ao grande e notório caçador, que só conseguia ver-se como “grande”, na presença de um dragão, o apaixonado caça a vida inteira a figura dragoniana de seu amor idealizado.

Em quase duas décadas de atendimento psicanalítico em meu consultório, pude perceber como é forte a potência do autoengano de uma pessoa apaixonada.

O sujeito apaixonado praticamente “reconstrói” o objeto amoroso. Seus olhos na verdade, não enxergam uma pessoa, enxergam na realidade suas muitas ilusões projetadas numa superfície opaca; o apaixonado está enamorado pela sua própria capacidade de se autoenganar através do outro.

A beleza acachapante do amado é apenas uma desculpa para sua falta de amor próprio. Ao enxergar uma perfeição que parece preencher sua vida, esquiva-se de perceber seus muitos “vazios sentimentais”; finge amar “demais” o outro, para eclipsar sua real incapacidade de amar.

O colorido extasiante do dragão de nossa ilustração representa a figuração hiperbólica e multicolorida que o objeto amado ganha frente aos olhos do apaixonado, em sentido real, este colorido fulgurante do objeto não se dá pelas reais qualidades do objeto, na realidade são as muitas projeções do apaixonado, que “pavonizam” o objeto idealizado. É por isso que, por mais que apontemos os defeitos do “amado”, parece que o apaixonado mantém-se cego. Na realidade sua cegueira não ocorre pelo simples motivo de não poder ver, mas sim pelo motivo de ver apenas aquilo que está disposto a ver.

Infelizmente, como o objeto amado e desejado é apenas uma ilusão, as projeções colocadas sobre ele não se sustentam por muito tempo. Após tais projeções “despencarem” é comum o antigo objeto amado, passar a ser odiado, nesta fase do ódio, o apaixonado, contrariando sua forte propensão em autoenganar-se, começa a vislumbrar o objeto como verdadeiramente ele “é”.

Diferente do caminho mítico de heróis e dragões (sem falar das donzelas fúteis que esperam um salvador), o caminho do amor não pressupõe um cenário tão dramático. Todo verdadeiro amor é construído por pequenos detalhes. O amor é sempre uma condição mútua de crescimento dos amantes. Ama bem, aquele que reconhece o outro como um “meio” e não como um “fim” para sua realização pessoal.

O amor, diferente da paixão, mostra-se como um afeto que não ofusca a razão.

Quem ama, não precisa transformar “dragões” em “pombas”, escolhe olhar para a real natureza do amado; não pensa em converter magicamente um animal feroz em “bichinho de estimação” após o casamento. Ninguém muda a natureza de ninguém.

Nem a mais avassaladora paixão é capaz de alterar a real natureza dos amantes, no máximo, à custa de um entorpecimento passageiro, a paixão tem o poder de ocultar momentaneamente, aquilo que cedo ou tarde se revelará.

Assim, aprendamos olhar para as coisas como elas são no amor; não somos transmutadores da história do outro. Tornar-se fiel a sua própria história, consiste, antes de qualquer coisa, em matar o terrível dragão das expectativas exageradas em relação ao outro.

PALAVRAS OCAS E AFETOS QUE FALAM

Autor: Prof. Me. Marcos de Oliveira

Desde os primórdios da psicanálise, a relação afetiva entre os primeiros cuidadores (pais) e a criança, fenômeno este considerado à base da formação do caráter, tem sido exaustivamente estudado e, Freud, o fundador desta ciência, desde seus primeiro trabalhos, salientou que existe uma estreita relação entre a sanidade mental e o tipo de relação afetiva vivenciada pela criança  em formação.

A transferência afetiva mútua entre pais e filhos, representa para a vida psíquica da criança o mesmo que o alimento representa para o corpo, assim, da mesma forma que a desnutrição coloca em risco o desenvolvimento do organismo debilitado, a vida mental sem a doação afetiva morre.

Mas afinal, em que consistiria essa enigmática e tão vital “doação afetiva”?

Em sentido básico, doár-se afetivamente significa, grosso modo, estar genuinamente interessado. Ao nos relacionarmos com nossos filhos, é fundamental uma integração emocional plena de nossa parte.

No início da vida mental existe uma relação emocional peculiar entre o infante e os que dele cuidam, chamamos tal estado de integração emocional de “empatia”, fenômeno que pode ser descrito como um tipo de “contágio emocional”.

Assim, o ambiente primário de formação modela o infante a partir de uma espécie de “comunicação emocional silenciosa”, por isso, tanto uma atitude favorável de acolhimento, como seu oposto, uma atitude desfavorável de desamparo, determinará certas linhas evolutivas da personalidade em formação.

Desta maneira, nossas crianças “conhecem” o tipo de cuidadores que somos, não pelas belas palavras que proferimos, tentando assim influenciá-las pedagogicamente, mas sim, pela verdade afetiva que transmitimos através de nossas atitudes emocionais mais íntimas, sendo estas, estados afetivos sutis, os quais, muitas vezes, são totalmente ignorados pelos pais e educadores.

Por isso, coisas que nem mesmo foram faladas de forma direta, são refletidas na criança.  A discordância oculta entre os pais, à falta de disposição afetiva em relação aos filhos (falta esta que é sentida muitas vezes como uma rejeição pela criança), desejos reprimidos oriundos de uma sexualidade mal resolvida do casal, entre outras dificuldades relacionais, acaba por produzir na criança um estado afetivo deletério, estado emocional negativo, que às vezes se manifesta por sinais objetivos de depressão e ansiedade.

Por outras palavras, grande parte da modelagem ambiental que a criança sofre é executada inconscientemente. Sem que nos apercebamos, nossas muitas incertezas e instabilidade emocional se transferem para os nossos filhos. Em grande parte das vezes, os distúrbios da infância são reflexos distorcidos de conflitos familiares mais amplos, de certa maneira, os filhos sempre serão “sintomas”, do que os pais foram afetivamente para eles.

A escola, por ser o ambiente de formação funcionalmente mais próximo do lar, é normalmente o palco de inúmeras manifestações sintomáticas; não é raro que educandos afetados por uma dinâmica familiar inadequada, manifestem diversas dificuldades interpessoais. Alguns desenvolvem, por causa de uma forte insegurança interna, normalmente originada de uma instabilidade familiar, uma atitude introvertida em relação aos professores e demais colegas. Como esses introvertidos perderam a confiança em seus cuidadores primários, e, a sua crença na estabilidade dos vínculos afetivos encontra-se abalada, essa desconfiança latente acaba por se deslocar para os outros. Infelizmente esta postura “subjetivamente fechada“ habitualmente culmina num ruidoso isolamento relacional.

Na linha oposta aos introvertidos, outras crianças afetadas tornam-se agressivas, e em alguns casos, até mesmo sádicas. Normalmente tal modelo é a repetição de um modelo familiar agressivo, mas em outros casos, os cuidadores primários não são propriamente agressivos, mas sim permissivos.       Neste caso, tais pais superprotegem mimando seus pequenos “anjinhos”.  Por serem fracos, os pais permissivos tornam-se incapazes de reprimir positivamente uma certa quantidade de agressividade inata de seus filhos.       Essas crianças super protegidas habitualmente encontram uma grande dificuldade em lidar com suas reais limitações e, como deslocamento defensivo, acabam por não reconhecer como positiva nenhuma autoridade limitadora de seus “super poderes”.

Poderíamos continuar a enumerar as infinitas possibilidades sintomáticas que nascem de uma dinâmica familiar enferma, porém, acreditamos que os aspectos abordados no presente artigo, são suficientes para ilustrar o quanto os distúrbios infantis estão imbricados aos inúmeros “conflitos ocultos” dos pais.  Às vezes o silêncio afetivo que é sentido no núcleo familiar, e, que causa dor psíquica ao afetado, é sintomaticamente substituído pela sonoridade despersonalizante das neuroses.  Daí o princípio, onde o amor cala, a doença fala.

É certo que essa nova consciência aumenta muitissimamente a nossa responsabilidade afetiva em relação aos nossos filhos, afinal, cobrar equilíbrio de nossos filhos, sem exigir o mesmo para nossas vidas, é uma forma de repetir inconsequentemente a quadra de Fernando Pessoa que diz: “Se eu pudesse te dizer / Aquilo que nunca te direi/ Tu poderias entender/ Aquilo que nem eu sei”.

DIALÉTICA DA INCERTEZA

Autor: Maria Aparecida Fagundes

DIALÉTICA DA INCERTEZA Este trabalho versa sobre as incertezas que rondam a civilização. Inversão de valores, conflitos sociais, guerras motivadas pelo poder, sobrevivência e pela ambição, mudança de paradigma em vários setores, principalmente nas inter-relações. Algumas inquietações são apresentadas com intento de chamar atenção de outros saberes, para um olhar cirúrgico nas questões do ser humano, uma vez que, o homem é o genitor e ao mesmo tempo vítima das mazelas do seu meio. Um dos sintomas que a sociedade está doente é o alto nível de patologias psíquicas. O jogo de forças opostas não permite intervenção efetiva e o saneamento dos conflitos. Foi escrito com base no pensamento de Sigmund Freud, que já pensava a civilização a mais de um século. Erich Fromm que também reflete o comportamento do homem com profundidade. Sergio Paulo Rouanet pesquisador da psicanálise, que instiga a mesma imputando grande responsabilidade na difícil tarefa de prover mudança na malha social que está porosa, frágil carecendo de mudanças. Palavras-chave: Psiquismo, conflito, sociedade, psicanálise,

 

 

A elite global quer eliminar 80% da humanidade. Mensagem cravada na pedra de granito, Georgia Guide Stones, EUA. Essa mensagem nos remete a pensar que o globo terrestre está no “limite” demográfico. Consequentemente se avizinham os problemas oriundos da concorrência  entre povos. O ser humano é, por natureza, competidor não apenas para conquistar o seu quinhão, mas para dominar e subjulgar o seu igual. A frase que inicia este texto exemplifica essa dinâmica. Competir, discordar, eliminar para chegar à “gloria”. Que glória? se o desejo é deslizante e montado a partir de várias matrizes.

Desde a revolução industrial o mundo passou por mudanças significativas. A forma de produção e a gestão de pessoas  assumiram caráter perverso.  Os povos atrasados por sua pobreza e invisibilidade histórica, sem voz ativa, tiveram que se submeter aos ditames dos  detentores do poder. O que gerou um conluio silencioso montado a partir de forças e fraquezas. As pessoas livres não necessitam de libertação e “as oprimidas não são suficientemente fortes para libertarem-se”.

O relacionamento entre os contratados e contratantes deixou de ser cordial para ser burocrático, desumanizando as relações. Segundo Erich Fromm “o que vemos hoje é uma grande máquina de produzir”, o elemento humano foi reduzido a um crachá. Os homens são olhados como produtores e consumidores. Pouco interessa aos capitalistas os sintomas destrutivos que acometem a sociedade em âmbito global. Como desdobramento desse processo podemos observar patologias graves como, por exemplo, o imperialismo, o belicismo americano, o crescimento do fundamentalismo, a intolerância e o nazismo.

Nos países subdesenvolvidos vemos com lentes de aumento os resquícios sórdidos do colonialismo, a exploração e manipulação de pessoas, inclusive crianças, que são tratadas meramente como números em detrimentos do enriquecimento dos “donos do mundo”. O Estado, com seu poderio gigantesco, deveria volver o olhar para os ‘sem vez’, flerta o tempo todo com o capital e faz o jogo dos empresários. Cresce a revolta e a descrença de pessoas que desconhecem métodos de organização que poderia promover a edificação da sociedade. Dessa forma a grande massa desassistida sai em busca do seu quinhão usando descaminhos, a força e a violência. Assim notamos que a liberdade de ambos os lados está ameaçada.

No último século a tecnologia passou por um avanço inimaginável, concebendo equipamentos abarcados de recursos para auxiliar o homem nas tarefas cotidiana, encurtar distâncias e conectar-se com o mundo. Em contrapartida o desenvolvimento humano ainda não se mostrou efetivo. Cotidianamente a mídia nos mostra atos humanos que nos chocam e envergonham. Por exemplo, Militares que são condecorados e recebem aumento de soldo por matarem centenas de seres humanos. Esse é um exemplo de grande visibilidade em época de guerra. Entretanto, no dia a dia a crueldade e a frieza assombra a todos, cito o tráfico de pessoas que só perde para o tráfico de drogas. A violência contra mulheres, a corrupção de percorre o mundo.

A mediocridade está estabelecida em todos os setores, como véu impede a visão aguda, a reflexão, o autoconhecimento. A mídia, que está serviço do capital, exerce a violência simbólica, bombardeia a mente das pessoas, deixando-as vazias de si e preenchendo-as com falsas promessas de felicidade, cuja finalidade meio e fim é o consumo, num processo que se retroalimenta . As pessoas são conduzidas como rebanho neste jogo onde só há um ganhador. Esse sistema perverso aprisiona com a falsa ideia de liberdade. Cria necessidades e desconstrói a autoimagem para que o individuo caia na esteira do consumo.

Igualmente observamos as regras do capitalismo aplicadas nas relações humanas. Onde as pessoas se relacionam de forma utilitarista, os vínculos afetivos estão cada vez mais voláteis, as pessoas entram em obsolescência em curto espaço de tempo. Observamos essa dinâmica no mercado de trabalho e nas inter relações. Como consequência há um esvaziamento de energia vital. A vida já não é tão preciosa, não há mais o planejamento para o futuro porque o futuro é agora. Uma das consequências é o alto índice de suicídio.

Diante dessas questões surge a inquietante pergunta a quem compete cuidar do futuro civilização? Numa resposta precipitada diríamos que compete aos governos eleitos para essa finalidade. Será que é de responsabilidade apenas dos governos? Ou será que as diversas áreas do conhecimento tem a obrigação de dialogar e buscar encaminhamento para os grandes problemas da humanidade?

Sigmund Freud evidenciou essa preocupação no livro O Mal Estar na Civilização e Futuro de uma Ilusão, “se esforçou para entender as macro estruturas e os fatores condicionantes da sociedade” como é dito na entrevista de Rouanet.  A mais de um século já havia por parte do criador da Psicanálise, um olhar voltado ao bem estar da civilização. Principalmente porque ele viveu numa época de grande perseguição e sofrimento promovidos pela Segunda Guerra. Entretanto, ele pondera a dificuldade de conciliar a manifestação instintual do homem na sociedade, pontilhada por regras e costumes.

Por muitos anos a psicanálise convergiu para o individuo, como se este fosse um mundo à parte. Faz-se mister lembrar que individuo é parte de um todo e só existe se for inserido na cultura.  Portanto, tratar um indivíduo por anos e devolvê-lo a uma sociedade doente poderá ser infrutífero. Essa reflexão levou a psicanálise intercambiar com outros saberes como, antropologia, sociologia e linguística, uma vez que, é preciso olhar o homem na sua totalidade com as inúmeras variáveis que modelam o caráter. Não é possível compreender o individuo sem pesquisar a sua história. Assim como não possível projetar o futuro sem analisar o contexto atual os novos paradigmas que estão sendo incorporados pela civilização. As crenças e as fantasias, citadas Nos Três Escrínios (Freud, 2008), como recursos auxiliar no equilíbrio do Eu estão se enfraquecendo.

Em seu livro “A descoberta do inconsciente social”, (Erich Fromm 1992), analisa as principais descobertas de Freud, que contribuem significativamente para entendermos o que se passa no mundo. “O comportamento do homem é amplamente determinado pelos impulsos, essencialmente irracionais, que entram em conflito com sua razão, padrões morais e padrões sociais”.

“Enquanto atua, o homem sente e pensa de acordo com forças inconscientes. Os impulsos instintuais para controlar e dominar estão no núcleo do seu processo inconsciente e obedecem a regência do instinto de sobrevivência, presente em todos os seres vivos”. Partindo dessa afirmação, é possível entender que a elite global, ao perceber a aproximação do “limite demográfico” e a consequente ameaça às condições de sobrevivência, considere a possibilidade de eliminar a maior parte da população, justamente a mais fraca e a menos competitiva.

Destacamos que a base da sobrevivência é inconsciente, mas o desejo de eliminação dos mais fracos é plenamente consciente.            Outro aspecto a ser considerado é o conflito entre as ideias conscientes do homem sobre o mundo e sobre si mesmo. As forças de motivação inconsciente rompem o pretenso equilíbrio entre o Eu e a sociedade, e produz patologias psíquicas como neuroses e impulsos de destrutividade, que impedem a percepção consciente de que, ao destruir seu semelhante, o homem, simultaneamente, destrói a sí mesmo.

Se atentarmos para o fato de que uma parcela significativa dos avanços tecnológico foi destinada à destruição, percebemos o paradoxo da orientação humana que, ao mesmo tempo em que descobre e produz recursos para viabilizar e melhorar a vida, também aumenta o risco de se autodestruir.

Partindo de uma visão realista o comportamento humano tende a continuar na mediocridade porque não é simples fazer a travessia para o autoconhecimento. Ao analisarmos a história das civilizações, constatamos que elas se desenvolveram até certo ponto e depois declinaram e desapareceram. Não seria a humanidade uma única e grande civilização que também chegaria ao fim?

Sabe-se que a vida em si não tem sentido algum, e que nada existe no externo capaz proteger ou determinar a existência. Portanto, compete ao homem encontrar as soluções para seus problemas existenciais. Haverá futuro para a ilusão? Qualquer que seja a resposta estará correta, pois o homem é o único arquiteto do seu universo social. Quais as oportunidades, investimentos, estratégias são destinadas à população para que todos se beneficiem da malha social sustentável? Como foi citado o psiquismo saudável depende de inúmeras variáveis e a maior certeza é a predição de um futuro incerto.

 

 

REFERÊNCIAS

Documentário Georgia guide Stones <http://www.youtube.com/watch?v=fbUWCnsidD0> acesso em:, 08 out.2012

Filho, Juvenal, Manual para elaboração de trabalhos acadêmicos

Freud, Sigmund, O caso schereber, artigos sobre a técnica de outros trabalhos. Edição Standart Brasileira das obras psicológica Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,1988.

FROMM,Erich, A descoberta do inconsciente social. São Paulo: Manole,1992.

MARCUSE, Herbert, Prefacio politico1966. In: Eros e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar,1966.

Oliveira, Marcos. Aulas ministradas no curso de Psicanálise Holística. São Paulo: 2012.

ROUANET, Paulo Sergio, Dupla utopia psicanalítica.  Revista Percurso, São Paulo:  nº. 33.

A PSICANÁLISE CULTURALISTA

Autor: Prof. Me. Marcos de Oliveira

Seria possível uma aproximação gnosiológica entre psicanálise, antropologia e sociologia? E, admitindo tal avizinhamento, quão frutífera se mostraria essa intrigante intersecção epistêmica?

Tentaremos mostrar nas próximas páginas que, a linha teórica que se celebrizou com epíteto de “culturalismo psicanalítico” é, em suma, a materialização das respostas para as interessantes inquirições propostas.

Antes, porém, de estudarmos propriamente o culturalismo psicanalítico, é importante que se diga, que, desde o início de seus revolucionários questionamentos, Freud ao falar, tanto do indivíduo normal, como, do indivíduo neurótico, mostrou vívido interesse em pesquisar as relações causais entre o indivíduo e a coletividade. Seu famoso conceito de “Superego” é a prova clara da importância que Freud conferiu à estrutura social, na formação do sujeito humano. Porém, seu interesse em buscar as causas das neuroses no “corpo” e não nas relações sociais, é evidentemente claro em seus primeiros trabalhos.

Freud, em sua primeira fase anatomo-fisiológica, deu uma excessiva importância ao “modelo biológico reflexo”, este paradigma foi usado tanto para explicar o surgimento do psiquismo, como também, para entender de forma determinista o funcionamento do inconsciente pessoal.

Esse reducionismo biologizante é facilmente percebido quando Freud fala de uma das teorias mais importante da psicanálise: a teoria psicanalítica das pulsões.

Sobre esse controvertido tema, podemos ler o seguinte em Freud:

 

…Por “pulsão” podemos entender, a princípio, apenas o representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente, para diferenciá-la do “estímulo” que é produzido por excitações isoladas vindas de fora. Pulsão, portanto, é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico. A hipótese mais simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão seria que, em si mesma, ela não possui qualidade alguma, devendo apenas ser considerada como uma medida de exigência de trabalho feita à vida anímica. O que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedade específicas é sua relação com suas fontes somáticas e seus alvos. A fonte da pulsão é um processo excitatório num órgão, e seu alvo imediato consiste na supressão desse estímulo orgânico (Freud, 2002, p. 46).

 

Podemos perceber no texto supracitado, a importância dispensada por Freud em distinguir entre o “estímulo” e a representação psíquica deste estímulo, que, é nominada por ele de “pulsão”. É dito também, que pulsão é um conceito intermediário entre o físico e o anímico, porém, no trecho apresentado, Freud não explica o que devemos entender por anímico, ou, o que de fato ele queria explicitar conceitualmente quando diz que pulsão é um “representante psíquico”.

Comentando o uso do termo alemão “trieb” e sua consequente tradução como “pulsão” no português, o erudito Luiz Hanns tece o seguinte comentário:

 

A tradução de trieb é uma das mais polêmicas, devido à extensa gama de significados e conotações do termo em alemão, bem como devido a peculiaridades no emprego freudiano do termo.(…) Em alemão podem-se designar com a palavra trieb diferentes dimensões e formas pelas quais as forças impelentes da natureza podem se manifestar.Tais forças podem, esquematicamente, ser classificadas em quatro níveis de manifestação: da natureza em geral, do biológico nas espécies, no indivíduo da espécie e para o indivíduo. Cada nível também produz em si uma escala que conduz do mais geral ao mais específico.(…) Se utiliza o trieb para aludir à manifestação da natureza no indivíduo como fenômeno fisiológico e somático (os estímulos, os reflexos, a energia circulante etc.) e finalmente para nomear a representação desse conjunto articulado, quando sentido ao nível íntimo e singular pelo sujeito como ânsia, impulso de vontade.(Hanns, 1996, p. 350)

 

Frente ao comentário acima, fica evidente que (fora à polissemia do termo “trieb”), essa palavra, tem a conotação em Freud, de algo que surge como um fenômeno físico e orgânico e pela sua natureza elástica, se desdobra na mente como uma exigência de trabalho psíquico.

Assim, embora o termo trieb às vezes no alemão se aplique aos nossos “instintos”, Freud em sua teoria pulsional, fala de algo que vai além do somático. Embora o fenômeno pulsional comece ligado aos processos fisiológicos, a pulsão é o instinto que se desnaturaliza e se transforma em uma representação mental, nessa passagem do orgânico para o mental, inaugura-se à estrutura subjetiva do ser.

Infelizmente, ao estudar a formação da subjetividade humana, Freud desconsiderou a influência do meio social na formação de suas “enigmáticas representações”, por isso, não soube diferenciar as primitivas “representações-memória”, das posteriores “representações–afeto”, criadas nas inter-relações desenvolvidas durante a maturação psico-afetiva da infância.

Portanto, o conceito de pulsão como algo capaz de produzir uma “representação mental”, só faz sentido quando a pulsão-representante é capaz de representar o sujeito ao próprio sujeito e, essa auto-representação “para-si”, só é possível quando ultrapassamos o corpo biológico e, descobrimos a partir do “tu”, um corpo preparado pela cultura.

No culturalismo a pulsão não tem nunca a sua satisfação meramente no “corpo físico”, bem ao contrário disso, as representações mentais quando deixam de ser meras memórias sensíveis e, passam a ser a recriação dialética de uma vivência particular e subjetiva, se estruturam num plano teleológico. Em outras palavras, a “anatomia não é o destino das pulsões”, as representações pulsionais são modeladas a partir de uma orientação cultural específica e se direcionam inconscientemente a uma meta cultural.

O questionamento sistemático e profundo das bases ontológicas do ser levou os culturalistas a repensarem o modo pelo qual o sujeito chega a ser sujeito. Ao invés de uma evolução natural de uma coisa inconsciente, que se torna consciente, no culturalismo o infante é inicialmente um predicado e, ao dar-se seu desenvolvimento e assujeitamento pela aculturação, torna-se enfim “sujeito”.

Essa idéia central de “desnaturalização dos instintos”, foi basicamente o motivo inicial do surgimento do culturalismo. Nas próximas linhas abordaremos quais os principais questionamentos dessa escola.

 

               Alfred Adler e o Culturalismo

Ao estudar as neuroses, Freud mostrou particular atenção em entender como se dava o desenvolvimento da criança junto a sua constelação familiar. Embora tenha demonstrado interesse também em conhecer qual o peso da influência social na formação do caráter, nunca considerou as descobertas sociológicas importantes para fundamentar as suas teorias, embora, é justo ressaltarmos que, quando Freud desenvolveu suas principais teorias, tanto a sociologia, como a antropologia, estavam elaborando ainda as suas primeiras conclusões epistêmicas.

O primeiro teórico a demonstrar a importância das relações sociais na formação de nosso senso identitário foi Alfred Adler, embora ele não possa ser alistado propriamente como “membro” da escola culturalista, suas inovadoras “teorias culturalistas” influenciaram fortemente os principais ícones da escola norte-americana de psicanálise culturalista.

Alfred Adler, nasceu em 7 de fevereiro de 1870 em Viena e, faleceu no dia 28 de maio de 1937 em Aberdeen (Grã-Bretanha). Este corajoso austríaco foi o primeiro dos discípulos de Freud a discordar formalmente do criador da psicanálise e a aventurar-se em uma trilha solitária e íngreme (Hanns, 1996).

Na teoria adleriana o homem é concebido como essencialmente um ser social, por isso, o interesse social é inato, a relação cooperativa com os semelhantes é vista por Adler como a base central da sanidade mental (Hall, 1974).

Adler conferiu pouca importância à libido sexual de Freud. Em seus escritos e conferências, não deixava de ressaltar que mesmo a sexualidade era mais usada como manifestação de um impulso inconsciente de poder, do que propriamente com uma objetivação puramente sexual.

Corajosamente ele dessexualizou o ser humano em sua teoria; para ele, mais importante que a sexualidade infantil, era a qualidade relacional vivida pela criança em seu meio.

Os complexos não se formavam por causa da repressão da libido, e sim, a libido sexual era reprimida muitas vezes por causa dos complexos; a verdadeira etiologia dos complexos mentais para Adler, advinham de sentimentos de inferioridade não superados no processo de maturação egóica.

Foi esse valoroso teórico que ofereceu à psicanálise o interessante conceito de “complexo de inferioridade”.  Resumindo tal noção, Adler dizia que, o excesso de mimo, ou o seu oposto, a falta de afeto, levavam inconscientemente a comportamentos compensatórios anormais, a neurose e a psicose, eram máscaras que cobriam temporariamente um angustiante senso interno de inferioridade.

Diferente de Freud, que ligava as representações mentais em sua origem a fontes endógenas, Adler como um grande pioneiro, mostrou que o ambiente emocional externo, bem como, as condições materiais do infante, influenciava poderosamente a formação de nossa subjetividade.

Adler foi muito influenciado pela tese sociológica de Karl Marx, por isso, acreditava que as representações ideativas eram um efeito colateral da materialidade ambiental que cercava o infante desde seu nascimento. A ideia de que a consciência é um epifenômeno da vida material, é facilmente percebida num trecho escrito por Marx: “A produção das idéias, representações, da consciência está a princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens linguagem da vida real” (Marx, 1984, p. 22).

Como Marx, Adler via na vida social a base fundadora de nossas ideações. A relação dialética entre o mundo e o sujeito é de suma importância em Adler, para ele, o objeto é significado valorativamente enquanto objeto relacionado a um sujeito, e o sujeito é tal e qual, a partir das relações que tem com os vários objetos mundanos.

Filosoficamente dizendo, Adler não reconhece a existência de um objeto puro, pois ele precisa ser visado pela nossa subjetividade para ganhar significância; nem aceita a hipótese se um sujeito puro, o mesmo, só assume seu papel de “animal significador” ao conferir sentido aos objetos, assim, tanto o sujeito, como também, o objeto, são frutos de uma ontológica relação dialética desenvolvida no âmbito da cultura.

Portanto, de certa forma, todo conhecimento constitui um objeto “visado”, nenhum conhecimento humano é capaz de conhecer o objeto “em si”, puro, como ele é.

Essa visão culturalista levou Adler a perceber que nossas muitas “certezas” e “verdades”, não passam de “ficções condutoras”, sistemas orientacionais criados pelo próprio ser humano. Muitas dessas ficções, inclusive, se prestam ao papel de ideologias de dominação, isso é facilmente ilustrado, citando o comentário de dois grandes historiadores modernos, lemos:

 

Outra grande diferença entre Adler e Freud estava na visão sobre a mulher. Adler afirmava não haver razão biológica – como, por exemplo, o conceito de Freud acerca da inveja do pênis – para justificar o sentimento de inferioridade da mulher. E afirmava ser esse um mito inventado pelo homem apenas para sustentar o próprio sentimento de superioridade. Qualquer sentimento de inferioridade da mulher resultava dos fatores sociais, tais como o estereotipo da mulher sensual. Adler acreditava na igualdade dos sexos e apoiava os movimentos de emancipação feminina daquela época (Schultz, 2005, p. 400).

 

Certamente Adler era um homem dotado de uma aguda visão intelectiva, ele estava bem à frente de seus contemporâneos. Indo contra o próprio Freud, ele dissolveu com sua potente teoria, a nefasta aparência de naturalidade da crença da “inferioridade da mulher”; tal pressuposto, era segundo seu viés revolucionário apenas uma criação humana, não parte da estrutura natural da mulher.

Foi Adler quem ensinou a psicanálise, que diferença não é necessariamente nem inferioridade, nem superioridade, diferença é tão somente diferença.

Ao questionar a inveja do pênis como um fenômeno biológico na estrutura feminina, ele lançou base para a idéia de que os “complexos” são montados pela nossa relação com a sociedade, tal visão revolucionária deslocou a importância etiológica dada aos instintos na formação das neuroses, para uma formação produzida em reação aos modelos culturais.

Em seu interessante livro “A Controvérsia Freud-Adler”, o escritor Bernhard Handlbauer, comentando sobre o “instinto agressivo” de Adler, faz notar a evolução conceitual de algumas de suas polêmicas teorias, é dito o seguinte:

 

O “instinto agressivo” de Adler flui em seus posteriores conceitos de protesto masculino, “empenho pelo poder” ou “empenho pela superioridade” que, no entanto, não mais define instintos biológicos. O significado da sexualidade se perdeu extensivamente na forma de pensar de Adler. Da mesma forma, Freud e seus estudantes não se deram ao trabalho de levar adiante as sugestões de Adler a respeito do relacionamento entre agressão e sexualidade (Handlbauer, 2005, p. 70).

 

A inveja do pênis que Freud concebia como inata, é transformada em um “protesto masculino”, uma crença de inferioridade criada pela cultura patriarcal. Adler reconhecia a existência de um instinto agressivo, esse em sua essência era neutro, porém, tal instinto quando ajustado a certa cultura, podia ser transformado em uma “ânsia de domínio”, por isso, a vontade que algumas mulheres demonstravam de ser “homem”, era apenas à vontade de dominar e, assumir o lugar social do “macho dominador”.

Essa “vontade de poder”, embora brote do instinto de agressividade, é uma volição existencial orientada culturalmente. Vontade é sempre vontade de alguém por algo e,  assim, essa “vontade de poder” sempre se efetivará num quadro orientacional oferecido pela cultura, assim sendo, a ânsia de domínio é fabricada parcialmente nas relações mundanas entre o ego e o mundo social.

Falando da situação da criança no mundo Adler descreve da seguinte forma tal fenômeno:

 

Desde a mais tenra idade, passa a perceber que existem outros seres humanos capazes de satisfazer completamente suas necessidades mais urgentes, melhor preparados para viver. (…) a criança aprende a dar valor excessivo ao tamanho que habilita uma pessoas a abrir uma porta, ou à força que habilita a transportar objetos pesados, ou ao direito de dar ordens e exigir obediência. Desperta em sua alma um desejo de crescer, de ficar tão forte como os outros, ou mesmo mais forte ainda. Dominar aqueles que vê junto a si faz-se então seu principal propósito de vida (Adler, 1957, p. 45).

 

Ao ter contato com a realidade externa, o infante é obrigado a crescer e a dominar coisas, a relação qualitativa, bem como, o seu direcionamento teleológico, será construído no seio destas múltiplas relações. Ao se deparar com um ambiente hostil que ressalta pejorativamente sua inadequação humana, ou mesmo ao perceber exigências desrazoáveis da parte dos adultos, a criança pode se identificar com sua pretensa inferioridade e, transformar desta maneira, a ânsia de domínio no seu oposto; se isso ocorrer o infante pode desenvolver um recolhimento na timidez, pode se mostrar excessivamente submisso ou, pode desenvolver uma devoção exacerbada, enfim, assumir uma postura masoquista.

O contrário disso também pode acontecer. Uma criança pode esconder seu complexo de inferioridade por detrás de uma máscara de superioridade, nesse caso desenvolverá uma atitude de dominação em relação às pessoas e as coisas ao seu redor, mesmo o prazer sexual será nesse caso, uma manifestação desdobrada da ânsia de poder.

Tanto o masoquista, de uma forma passiva, como o sádico, de forma ativa, buscam o domínio, tentam dominar a sua própria ansiedade e, ao mesmo tempo, tentam exercer poder sobre os objetos.

O complexado sofre na verdade de uma “neurose de poder”, o poder-ser é confundido com o poder-ter. A ordem teleológica produtiva do para-ser é bloqueada, como imitação da produtividade egóica, o neurótico vive para ter. Aquilo que não consegue produzir no âmbito de sua intimidade, busca produzir e acumular materialmente, para compensar no externo, o que lhe falta internamente.

Com Adler aprendemos que nossos movimentos como seres mundanos, dependerá do tipo de “mundo social” que vivemos, afinal, toda e qualquer ficção condutora mental,  depende da cultura que serve como base geradora das categorias teleológicas. Isso foi dito por ele nas seguintes palavras:

 

A mente não conhece nenhuma lei natural já que o objetivo está sempre mudando. Se, porém, um indivíduo tem um objetivo constante, nesse caso cada tendência psíquica deve sofrer certa compulsão, como se alguma lei natural a influenciasse. Leis que governam a vida psíquica existem – mas são leis feitas pelo homem (Adler, 1957, p.32).

 

O homem não é determinado pelos seus instintos, seus comportamentos e anseios existenciais são mutáveis, seus desejos nascem da cultura. O homem é o único ser que se determina a si mesmo através de um “outro” que lhe é semelhante, porém, similitude não é igualdade, é na razão crítica daquilo que é desigual, que aprendemos pela força de uma negação estrutural, a nos afirmamos idênticos a nós mesmos. É por esse artifício criado pela cultura que nasce o “eu”.

Em Adler, o contato afetivo do ser com o mundo “real”, depende das “leis mentais” que regem inconscientemente a ação teleológica de cada indivíduo, por sua vez, tais leis serão o resultado da soma relacional entre o eu e a sua sociedade. Por isso, diferente de uma visão fisicista ingênua, o dinamismo afetivo transferencial ganha uma nova conotação na teoria adleriana.

A dessexualização da vivência psíquica foi um grande avanço. Com isso a psicanálise ganhou uma base existencialista para suas teorias, o ser humano deixou de ser pensado como mero fruto de instintos primitivos, ao contrário disso, não é tanto sua base primitiva que o afeta, é a impossibilidade existencial de transformar o primitivo em algo “novo” que de fato faz diferença.

Adler abre campo para pensarmos o eu como uma base flexível, com suas teorias culturalistas ele mostrou que muito do que Freud via como parte constituinte do ser, era na verdade produto de tentativas de adaptação, bem mais do que sua base fixa e biológica, o contato com o “mundo de fora” é o que determina parcialmente o que somos.

Mas afinal, o que verdadeiramente somos?

Seguindo o caminho iniciado por Adler, a escola culturalista norte-americana, desde o começo tentou oferecer uma resposta para a intrigante inquirição existencial em questão. Os teóricos desta escola ampliaram muitissimamente as pioneiras conclusões de Adler, bem como, ofereceram algumas inovadoras propostas.

 

            O Culturalismo Psicanalítico

Com a crescente ameaça de guerra, e, com o fortalecimento do nazismo, a grande maioria dos psicanalistas europeus se retiraram da Europa em busca de maior proteção, com tal êxodo, a Inglaterra e os Estados Unidos converteram-se nos dois maiores centros de estudos psicanalíticos.

De acordo com Clara Thompson, a guerra trouxe muitas limitações; a dificuldade de transporte, a escassez de papel, entre outras dificuldades, impossibilitou uma colaboração ativa entre os dois supracitados centros, essa distância criou base para uma evolução um tanto independente dos dois polos (Thompson, 1969).

Três grandes nomes contribuíram de forma decisiva para o surgimento do culturalismo: o médico psiquiatra Harry Stacy Sullivan, o filósofo social Erich Fromm e a clínica geral Karen Horney.

Sem dúvida nenhuma Fromm, dos três nomes citados, foi o teórico mais significativo, ele influenciou profundamente Horney em suas teorizações. Sullivan embora tenha sido o que menos expôs suas idéias literariamente, manteve uma certa distância epistêmica tanto em relação a Fromm, como também, das teses desenvolvidas por Karen Horney.

Em 1943, Sullivan fundou junto com Clara Thompsom, Erich Fromm, Frieda Fromm-Reichmamm, Janet e David M. Rioch, o William Alanso White Institute, a instituição responsável pelo ensino e divulgação da psicanálise interpessoal (Mijolla, 2002)

 

             Sullivan e Sua Análise Interpessoal

Como teórico, Sullivan foi fortemente influenciado por Freud, bem como, por alguns outros vultos de peso como o filósofo social George Mead, os antropologistas culturais Edward Sapir e Ruth Benedict, o sociólogo Leonard Cottrell, além é claro, do renomado neuro-psiquiatra William A. White (Hall, 1974, p. 159).

Diferente de muitos de seus contemporâneos que, romanticamente acreditavam em um “verdadeiro eu”, como uma essência pura, Sullivan fala de uma essência que será criada como produto de interação com a nossa base social.

Assim, Sullivan descreve a personalidade como “um padrão, relativamente constante, de situações interpessoais periódicas que caracterizam a vida humana” (Hall,1974, p.158).

De uma forma muito original, Sullivan diz que o que chamamos de personalidade é meramente uma “entidade hipotética”, ou seja, o “eu” seria uma ficção aglutinadora de nossas inúmeras máscaras sociais, sendo assim, só podemos entender e estudar o eu a partir do comportamento interpessoal. O eu como uma entidade isolada das situações interpessoais, não passaria de um “fantasma” criado pelas nossas vagas abstrações.

Sullivan por discordar da visão instintivista de Freud, concebe uma base dialética e flexível para o eu. Em suas teorias, o eu não é nunca uma “inteireza”, ou um “bloco de certezas”, bem ao contrário dessa visão estática, Sullivan nos apresenta um dinâmico centro organizador de nosso senso de pessoalidade, núcleo ordenador este, ligado a uma estrutura egóica sempre aberta em busca de novos desdobramentos existenciais.

Portanto, o indivíduo é a soma (e por que não a subtração) de suas relações interpessoais, sua formação identitária é fruto de diversas e variadas identificações; dentro de todos nós por isso, há um discurso montado por “várias vozes” ouvidas e assimiladas durante nosso contínuo percurso existencial, em outras palavras, todo aquele que sustenta sua vida mental às custas de um “monótono solilóquio” é um verdadeiro alienado; o monoideísmo mental gera uma única versão da existência, o que essencialmente atenta contra as múltiplas manifestações do eu.

Essa visão multifacetada do eu, anula a clássica inquirição existencial: quem sou eu? – afinal, tal pergunta pode eclipsar o caminho multidirecional da resposta, a forma tradicional de inquirir, pressupõe uma única e possível resposta. Ao invés de uma unidade fixa e facilmente mensurável, Sullivan oferece em sua proposta epistêmica, um “eu aberto”, com diversas manifestações existenciais possíveis, sua teoria sublinha o aspecto plural e inacabado da pessoa humana.

No contato com o outro, somos construídos e, cooperamos na construção dos outros; o ser humano é um produto das interações sociais, como Adler, para Sullivan, somos essencialmente animais sociais.

As diversas e constantes experiências interpessoais do indivíduo, são tão significantes que, alteram gradativamente o funcionamento puramente fisiológico, mesmo a base orgânica do sujeito é transformada em “organismo social”; a respiração, a digestão, a eliminação, a circulação, entre outras funções básicas do organismo, são levadas a se adaptarem coercitivamente aos modos socializados de funcionamento.

 

            A Empatia no Processo de Aculturação

Para Sullivan todas as metas do comportamento humano se dirigem para duas principais necessidades básicas da existência pessoal: a busca constante de satisfação e a busca cada vez maior por segurança.

A primeira busca tem haver principalmente com as necessidades biológicas do ser, já a segunda, está mais relacionada com sua segunda natureza cultural; Sullivan reconhece o entrosamento constante dessas duas demandas.

O homem busca, conscientemente e inconscientemente, a vida inteira a segurança. Culturalmente a ideia de segurança quase sempre está associada a um forte “sentimento de pertença”, por isso, a segurança egóica é em certo aspecto um sinônimo de ser aceito e de participar de “algo maior”.

Sullivan fala de uma montagem empática do nosso eu, mesmo sem estar cônscio de sua existência pessoal, a criança é desde seu nascimento modelada por pessoas próximas, algumas dessas pessoas são extremamente significantes para sua existência pessoal, particularmente por meio da “função mãe”, são comunicadas muitas das regras e ditames sociais que o infante terá que seguir.

Esse contato empático primitivo é muito importante para a montagem da estrutura pessoal, a ansiedade, a ira, a depressão, entre outras coisas sentidas silenciosamente pelo bebê, lhe trazem uma certa intranqüilidade, essa modelagem negativa indireta, pode trazer dificuldades sérias para a criança afetada.

A doutrinação do ser em formação, portanto, acontece empaticamente de forma indireta ou direta, ao comentar as teorias de Sullivan, o filósofo e escritor Patrick Mullah, escreveu o seguinte sobre o processo empático:

 

Em virtude da empatia, muito antes que o infante possa compreender o que está acontecendo, ele já se dá conta de algo nas atitudes das pessoas significantes que o cercam. Mais tarde, ensinam-lhe deliberadamente o que está certo e errado, o “bom” e o “mau”. Dessa maneira, os impulsos, as solicitações biológicas do infante, são socialmente “condicionados”, isto é, modelados, tanto como forma de expressão como de realização, segundo padrões culturalmente aprovados (Mullahy, 1969, p.305).

 

O fenômeno humano da “empatia” é uma abertura para modelagem social, sempre que a criança faz algo aprovado culturalmente, ela terá uma experiência de bem-estar, já a desaprovação, ao contrário, levará o infante a uma sensação de insegurança e de forte ansiedade. Sua consciência em formação, será levada coercitivamente a uma adaptação com a consciência social vigente, os agentes culturais primários sem estarem cônscios plenamente de seu papel de “ajustadores sociais”, educam empaticamente o neófito.

A evolução do eu dentro da visão de Sullivan, corresponde por conseqüência, a uma estratificação do senso discriminativo social, ao se desenvolver, a criança será ensinada a todo o momento a concentrar sua atenção na prática dos atos que suscitam a aprovação ou desaprovação, sua capacidade de formar juízos de valores é fruto dessa interação com os agentes culturais.

Como Sullivan resiste em usar o termo “inconsciente”, ele prefere dizer que os aspectos que suscitam “reprovação”, são “dissociados” do campo mental consciente, normalmente os elementos dissociados não são reconhecidos pela pessoa que os exclui. Os componentes ideacionais dissociados não são facilmente incorporados, como Freud, Sullivan diz que a ajuda terapêutica serve para tornar o paciente cônscio de seus elementos rejeitados.

Visto que a pessoa humana é fruto da cultura, toda as tentativas para mudar crenças geram ansiedade, o psicanalista como uma pessoa “significativa” pode influenciar na ressignificação do auto-sistema do paciente, porém, como o homem é preenchido pela cultura gerada na interações humanas, ao abandonar uma crença, somos levados a substituí-la por uma outra.

 

           Personificações

É chamado de personificação a imagem que criamos de nós mesmos ou dos outros. Para Sullivan a personificação não se refere conceitualmente a uma simples “imagem”, ela é um complexo de sentimentos, atitudes, idéias e sensações que captamos em diversas experiências interpessoais.

Quando uma criança é bem cuidada pela mãe, ela acaba por criar uma personificação positiva, o que faz com que a criança sinta um sentimento de bem-estar. Sem que percebamos, qualquer relação interpessoal que nos traz satisfação, gera uma personificação positiva do agente da satisfação.

No pólo oposto ao descrito, quando uma mãe odiosa, ansiosa, desinteressada ou super protetora, tem contato com uma criança, a mesma cria uma personificação da mãe má, os pequenos detalhes indesejáveis sentidos pelo infante, criam personificações complexas, sua ansiedade, pode ser o alimento de diversas fantasias terríveis; no fundo, quando o senso de segurança é abalado, haverá sempre o aumento do nível da ansiedade de desamparo.

Tanto as personificações boas, como também as más, podem gerar o que Sullivan chamou de “distorção paratática” (Thompson, 1969, p. 194)

Normalmente a imagens que levamos conosco, em nosso mundo interno, não correspondem a uma descrição precisa das pessoas que nos cercam, formamos tais imagens a partir de intenções não muito claras a nós mesmos. Ao sofrermos o aumento do nível de ansiedade, podemos produzir falsas imagens e, assim,  projetamos tais produtos nas pessoas, ora personificando “anjos”, ora personificando “demônios”.

Esse conceito de distorção paratática de Sullivan, é muito parecido ao conceito freudiano de transferência.

 

            A Linguagem e o Eu

Não poderíamos deixar de destacar uma das maiores contribuições de Sullivan à psicanálise moderna: as relações sutis entre o eu e a linguagem.

Porém, para que possamos entender bem aquilo que Sullivan quis dizer, quando se referiu a linguagem como um fenômeno essencial na formação humana, é necessário entendermos minimamente esse crucial fenômeno.

A linguagem pode ser definida como um sistema de signos ou sinais, usualmente utilizada para indicar coisas, ela é vital para a comunicação humana, nosso mundo afetivo interno, bem como, idéias e valores, podem ser transmitidos por tal via formal.

Quando nos referimos à linguagem como um “sistema”, estamos dizendo que ela é uma totalidade estruturada, sendo que, tal estrutura tem seus próprios princípios e leis de regência específicas.

Em linhas gerais, a linguagem como síntese, abarca quatro funções primárias em sua estrutura: indicativa, comunicativa, expressiva e conotativa.

Podemos dizer que a linguagem é vital no contato interpessoal, afinal, a linguagem é um instrumento do pensamento; é por meio dela que abstraímos o concreto e, criamos nosso universo simbólico, nossos variados conceitos são categorias somente possíveis de serem criadas a partir da linguagem.

Quando a criança é inserida no sistema lingüístico, Sullivan diz que se inicia um importante fenômeno para seu ajustamento cultural, ele chamou esse fenômeno de “autística” (Mullahy, 1969, p. 312)

Com esse estranho termo, Sullivan explicita conceitualmente, que à medida que o “infante” progride na assimilação lingüística e formal, uma espécie de alienação se processa, ele se distancia da “coisa em si” e, aprende a pensar não a partir do sensível, mas sim, a partir do “consenso”.

Por isso, conhecer o mundo é na verdade conhecer uma maneira específica de conhecer. Nosso conhecimento não representa a coisa em si, representa apenas os elementos estruturados pelo nosso arbitrário saber.

Podemos dizer que a autística é um aprimoramento na atividade simbólica da criança, pela educação, ela lentamente é levada a prender-se aos padrões de relação da linguagem, ela só será reconhecida à medida que se curva às regras gramaticais impostas pela sociedade.

Inicialmente por causa de sua pouca assimilação cultural, as atividades simbólicas da criança são altamente pessoais, quanto mais a criança é aculturada, mais ela se conforma com a “realidade dos adultos”, esse ajustamento é normalmente premiado, enquanto a falta de ajustamento, quase sempre, traz um castigo.

Sobre esse ajustamento, o já citado filósofo Patrick Mullahy, comenta o seguinte sobre a visão interpessoal de Sullivan:

 

A criança aprende gradualmente o significado “consensualmente validado” da linguagem – no mais amplo sentido da palavra. Tais significados foram adquiridos por meio de atividades de grupo, atividades interpessoais e experiência social. A atividade simbólica, consensualmente validada envolve um apelo a princípios que foram aceitos como verdadeiros pelo ouvinte. E quando isso ocorre, o jovem adquiriu ou aprendeu o modo sintático de experiência (Mullahy, 1969, p314).

 

A experiência linguística é vivenciada pela criança como uma experiência de “aceitação”. O modo sintático que o comentarista cita no texto, se refere a um nível de apreensão mental, descrito por Sullivan, onde a criança já consegue elaborar sínteses, sua capacidade de abstração já o torna capaz de entender e transmitir certos conceitos e valores sociais.

Portanto, a razão é um forte instrumento usado para diminuir e controlar a ansiedade, porém, nem sempre tal recurso cultural tem efeito. Sullivan teorizou que sempre que a ansiedade é muito forte, há uma regressão ao modo paratático de experiência, sendo esse modo, uma forma anterior ao modo sintático. Ao dar-se essa regressão, de acordo com o pensamento de Sullivan, esse fenômeno, levaria a desestruturação do plano lógico do sujeito. Esse instigante conceito, lembra muito a teoria do “terror-sem-nome” de Bion, ou ainda, a “regressão as fantasia de corpo despedaçado” de Lacan.

Certamente, muito mais coisas poderiam ser ditas sobre as valiosas teorias de Sullivan, porém, isso não é possível nesse trabalho panorâmico. Em seguida deslizaremos nossa atenção sobre uma outra importante figura do culturalismo: Karen Horney.

 

           Uma Mulher Muito Corajosa

Horney foi uma mulher de muitas qualidades. Viveu numa época onde o falocentrismo psicanalítico predominava. Por isso, sua corajosa postura intelectual questionadora, foi vital para o desenvolvimento da psicanálise.

O próprio Freud como criador da psicanálise, defendia uma visão estritamente falocêntrica. Em seu “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, definindo a natureza essencial de sua “libido sexual”, escreveu:

 

A atitude auto-erótica das zonas erógenas é idêntica em ambos os sexos, e essa conformidade suprime na infância a possibilidade de uma diferenciação sexual como a que se estabelece depois da puberdade. Com respeito às manifestações auto-eróticas e masturbatórias da sexualidade, poder-se-ia formular a tese de que a sexualidade das meninas tem um caráter inteiramente masculino. A rigor, se soubéssemos dar aos conceitos de “masculino’ e “feminino” um conteúdo mais preciso, seria possível defender a alegação de que a libido é, regular e normativamente, de natureza masculina, quer ocorra no homem ou na mulher, e abstraindo seu objeto, seja este homem ou mulher (Freud, 2002, p.96).

 

Freud acreditava que a libido sexual era uma energia masculina, isso fazia da própria sexualidade, um desdobramento dessa potência masculina. Assim, a masculinidade era natural, já a feminilidade era uma decepcionante descoberta.

De acordo com a teoria freudiana, tanto o menino, como a menina, passavam pela angústia de castração; no entanto, o complexo de castração era positivo no caso do menino, pois, ao sofrer a angústia da castração ele superava o complexo de Édipo. Bem ao contrário disso, na menina a angústia de castração gerava um sentimento de “incompletude”.  A inveja do pênis era o produto final da castração no caso da menina, ao invés de se livrar do Édipo, ela ficava presa a uma promessa inconsciente que a fixava no Édipo.

Em outras palavras, no caso da mulher, a feminilidade era uma descoberta “negativa”, a ideia de castração era ligada ao seu pênis incompleto (clitóris). Na teoria clássica a menina inconformada com sua falta de sorte, culpava a mãe por ter vindo ao mundo tão mal equipada, por fim, se identificava com a figura paterna e, se recolhia em sua feminilidade, com isso ficava a vida inteira aguardando um “pênis”. Com a demora da concretização da promessa peniana, deslocava com o tempo seu desejo para um outro objeto substituto: um bebê.

Psicanalistas célebres aceitaram por muito tempo essa descrição freudiana, como a única via para entender a psique feminina, e, psicanalistas como a polonesa Helene Deutsch, além de aceitar tais pressupostos, ampliaram tal visão machista. Essa influente psicanalista baseada na idéia da passividade natural da mulher, concluiu que tal passividade era um sinônimo de um “masoquismo” estrutural, por isso, as dores do parto eram para a mulher, um verdadeiro orgasmo (Mijolla, 2002).

Também, o psicanalista húngaro Sandor Ferenczi, ratificou a opinião de Deutsch, dando a idéia que o parto como concretização da promessa edipiana, era um momento especial de puro prazer orgástico (Sayers, 1992).

Horney corajosamente questionou a veracidade dessas idéias, para ela essas crenças eram meras fábulas criadas pelos homens. Evidentemente, não era a originalidade a marca maior dessa postura questionadora, afinal, Adler já havia levantado suspeitas sobre a constituição inata da “inveja do pênis”, o que talvez Horney tenha feito de melhor, foi a sistematização de uma teoria contrária.

Inicialmente Horney se apoiou em um pressuposto biológico para provar que, o que designou de “feminilidade inata”, não dependia do complexo de Édipo.

Horney afirmou que a ligação da menina com o seu pai no Édipo era um desenvolvimento normal e diretamente ligado à feminilidade inata (Ceccarelli, 1990).

Ainda nessa sua primeira fase trabalhando com o paradigma biológico, Horney não conseguiu desmentir algumas fantasias que pareciam apontar para a existência de algo próximo a inveja do pênis, o que fez por volta de 1926, foi apenas contra argumentar de uma forma um tanto desesperada, dizendo que; se a inveja do pênis era um fato psíquico, também não faltavam fantasias que apontavam para uma “inveja masculina” do ventre” (Sayers, 1992).

Já numa segunda fase mais madura, a partir de 1930, seu direcionamento teórico mudou sensivelmente. Gradativamente sua visão biologizante foi sendo enfraquecida, Horney reformulou suas teses iniciais e adotou o paradigma culturalista para entender alguns fatos psíquicos.

Nesse momento, sua defesa se aproximou ainda mais das teses defendidas anteriormente por Alfred Adler, ela começou a conceber a inveja do pênis, como uma inveja fálica referente ao lugar privilegiado que o homem assumia no sistema patriarcal.

Em seu famoso livro “Novos Rumos na Psicanálise”, Horney apresenta suas reformulações teóricas nos seguintes termos:

 

Tem sido dito que as mulheres adultas podem expressar, explicitamente, ou representando-se a si própria em sonhos com um pênis ou com um símbolo fálico, certo desejo de serem homens. Podem também demonstrar desprezo para com as mulheres e atribuir certos sentimentos de inferioridade que possuem ao fato de serem mulheres, ou, ainda, tendências de castração podem-se manifestar ou se expressar em sonhos, clara ou disfarçadamente. Estes últimos fatos, ainda que a sua ocorrência esteja fora de dúvida, não são tão freqüentes como certos trabalhos analíticos sugerem. Além disso, só ocorrem com mulheres neuróticas e comportam uma interpretação diferente (…) aparecem aqui os fatores culturais. O desejo de ser um homem, como assinalou Alfred Adler, pode ser a expressão de um desejo de possuir aquelas qualidades ou privilégios que, na nossa cultura, são considerados como masculino: força, coragem, independência, sucesso, liberdade sexual e direito de escolher um companheiro (Horney, 1966, pp.90-91).

 

Após concordar que algumas mulheres de fato demonstram uma inveja fálica, Horney diz que tal ocorrência é um sintoma neurótico, não um traço comum da constituição feminina.

Depois em sua argumentação evoca Adler, e junto com este, diz que a inveja do pênis é na verdade uma inveja construída culturalmente a partir da discriminação que a mulher sofre em nossa sociedade. Querer ser um homem, é uma forma simbólica de dizer que gostaria de ser valorizada por ser também humana. Porém, Horney não esgota sua contra argumentação nessa única possibilidade. Ampliando sua divergência ela continua:

 

É necessário levar em conta a possibilidade que o desejo humano de ser homem seja o disfarce assumido por uma ambição recalcada. Nas pessoas neuróticas, a ambição pode ser tão destrutiva a ponto de ficar impregnada de angústia e necessitar ser recalcada. Isso é verdade tanto para o homem quanto para a mulher, mas, como uma conseqüência da situação cultural, na mulher uma ambição destrutiva recalcada pode-se expressar por meio do símbolo, comparativamente inócuo, do desejo de ser homem (Horney, 1966, p. 91).

 

E, ainda sobre a idéia freudiana de um masoquismo estrutural na mulher, idéia essa, tão ardorosamente defendida por Helene Deutsch, Horney escreveu:

 

Muitas mulheres neuróticas têm idéias masoquistas a respeito do ato sexual. Acham que a mulher é uma vítima dos desejos animalescos do homem, que ela deve sacrificar a si mesma e que este sacrifício rebaixa-a. Podem mesmo engendrar fantasias a respeito de serem fisicamente ofendidas pela cópula. Algumas mulheres neuróticas desenvolvem fantasias de satisfação masoquista através do parto. O grande número de mães que assume o papel de mártires e que, continuamente, estão lembrando o quanto se sacrificam pelos seus filhos, pode certamente servir como prova de que a maternidade é capaz de oferecer na satisfação masoquista para as mulheres neuróticas. Há também moças neuróticas que fogem ao matrimônio porque imaginam que serão escravizadas e maltratadas pelo futuro marido, Por fim, as fantasias masoquistas a respeito da função sexual da mulher podem contribuir para rejeição do papel feminino e para a preferência pelo masculino (Horney, 1966, p 93).

 

Novamente Horney concorda com o fato de existirem mulheres que vinculem sua feminilidade com traços masoquistas, porém, ela diz que isso é uma manifestação neurótica, não uma tendência normal da constituição feminina, portanto, sua concordância é parcialmente, e, totalmente contrária à visão generalizante de Freud e Deutsch.

Para Horney, a ligação biológica entre os sexos opostos, é mediado por diversos anseios culturais inconscientes. O domínio patriarcal levou a mulher a uma supervalorização do amor, por muito tempo à única forma da mulher se realizar era sendo “mãe”, isso fez com que o sacrifício de sua individualidade fosse sentido muitas vezes como uma “ferida necessária”, a expressão plena desse fato é a máxima do senso comum que diz que: “… ser mãe, é padecer no paraíso”.

A alteração paradigmática introduzida por Horney em seu próprio pensamento, fez com que ela se aproximasse mais ainda de Adler, como esse grande teórico, ela foi levada a conceber a “meta masculina” como uma “ficção condutora”. Suas teorias ganharam cada vez mais leveza, ao mesmo tempo em que ficaram mais consistentes. Horney, com o tempo, descobriu que talvez o maior motivo de sustentação das neuroses, é a nossa tendência inconsciente de naturalizar aquilo que é cultural.

 

            As Bases Culturais das Neuroses

Ao questionar a razão biológica da inveja do pênis, Horney foi levada a questionar a legitimidade de toda teoria instintivista de Freud. Com o tempo, passou a duvidar particularmente das bases biológicas das chamadas neuroses, desse questionamento sistematizado, surgiu uma profunda e interessante teoria explicativa.

Em seu livro “A Personalidade Neurótica de Nosso Tempo”, Horney nos oferece em termos bem simplificados, como distinguir a maneira normal e a neurótica de reação, tal distinção é muito importante, até porque, para entendermos a base etiológica das diversas neuroses, é necessário antes caracterizar o chamado “tipo neurótico”. Ela começa sua distinção dizendo:

 

As condições de vida de toda cultura dão lugar a certos medos. Podem ser ocasionados por perigos externos (natureza, inimigos), pelas modalidades das relações sociais (incitamento à hostilidade devido ao recalque, injustiça, dependência forcada, frustrações), por oposição a tradições culturais (medos tradicional de demônios, de violação de tabus) independentemente de como se hajam originado. Um indivíduo pode ser mais ou menos sujeito a esses medos, porém, de modo geral , é licito presumir que eles atuem sobre todos os indivíduos que vivem numa dada cultura e a que ninguém pode escapar. O neurótico, contudo, não só participa dos medos comuns a todos os indivíduos de sua cultura, como também, por causa de circunstâncias de sua vida individual – que, todavia, estão mescladas com as circunstâncias gerais – tem medo que se afastam, quantitativa ou qualitativamente, dos peculiares aos padrões culturais (Horney, 1972, p. 14).

 

O medo mórbido e paralisante do neurótico é uma reação desproporcional em referência ao estímulo, seu medo é apenas atualizado no “real”, não é causado pelo mesmo. O indivíduo normal teme reativamente, porém, não teme compulsivamente, seu medo acaba onde começou.

Muito interessantemente, Horney destaca que nosso contato com a existência é fortemente mascarado pelo medo. Sentir medo, portanto, está intimamente ligado ao nosso ato racional discriminativo.

O medo neurótico, bem diferente dessa ativação discriminativa é irracional. Assim, o conteúdo de tal medo é sempre uma “mescla” de sentimentos, por isso, o senso discriminativo é praticamente anulado.

Uma pessoa normal, embora sofra os muitos medos culturais, potencializa sua coesão egóica em defesa de sua vida, sua capacidade interna é usada na superação das dificuldades existenciais.

O neurótico se perde em seu sofrimento, é muito comum o indivíduo neurotizado idealizar a “morte” como uma solução para os problemas da vida, na neurose sempre existe uma discrepância entre a potencialidade interna e as realizações do sujeito.

As defesas normais do ego visam elaborar uma nova maneira de se relacionar com a existência, são em si, o germe de um novo momento, de um novo contato com o real. O que chamamos de “defesas maníacas”, se prendem ao antigo, levam o neurótico novamente ao passado, infelizmente, ao invés, dessa viagem regressiva reorganizar a vivência presente do sofredor, só o leva a sofrer pela “segunda vez”, aquilo que sofreu no passado.

Frente a essas diferenças básicas, entre o normal e o anormal, Horney considera a neurose como uma forma mal sucedida de desenvolvimento, por isso, o neurótico evolui em seu quadro deletério, porém, não se desenvolve como ser humano.

A natureza compulsiva das tendências neuróticas, seriam uma reação maníaca impetrada contra a ansiedade inconsciente. Como Adler, Horney também acreditava que uma vivência afetiva insatisfatória na infância, tinha um grande peso na configuração da personalidade neurótica.

Falando sobre a gênese dessas tendências diversas no ser humano, ela escreveu:

 

Elas se formam bem cedo na vida, graças ao efeito combinado de certas influências do temperamento e do ambiente. O fato de uma criança tornar-se submissa ou rebelde, sob a pressão coercitiva dos pais, depende não só da natureza da coerção, mas igualmente de certas qualidades, como o seu grau de vitalidade e a sua relativa brandura ou resistência natural. (…) Em quaisquer condições,a criança será influenciada por seu ambiente: o que interessa é saber se esta influência tolhe ou favorece o crescimento. E o que prevalecerá vai depender sobretudo do tipo de relacionamento estabelecido entre a criança e seus pais ou outras pessoas que a rodeiam, inclusive outras crianças da família. Se a mentalidade no lar é de cordialidade, respeito e consideração mútuos, a criança poderá crescer sem obstáculos (Horney, 1984, pp. 35-36).

 

Como é visto no texto acima, diversos fatores influenciam na construção de uma personalidade, porém, todos esses fatores estão ligados ao relacionamento do ser com o seu ambiente. O culturalismo de Horney descarta “influências inatas”, o drama edipiano é relido como uma das ocorrências existenciais significativas, e não como um mito ontológico intrínseco ao ser.

Influenciada pela hipótese freudiana de um inconsciente filogenético, a escola inglesa, até mesmo chegou à fantástica teoria das “fantasias originárias”, formas filogenéticas que afetavam instintivamente a criança desde seu nascimento, Melanie Klein se refere a tal postulado teórico da seguinte forma:

 

As teorias sexuais formam a base da maioria das fixações sádicas e primitivas, Freud nos ensinou que a criança obtém um certo saber inconsciente, aparentemente de forma filogenética. Este inclui o conhecimento sobre a relação sexual entre os pais, o nascimento das crianças, etc.; contudo trata-se apenas de um saber vago e confuso (Klein, 1996, p. 204).

 

Se fiando na obscura e prematura teoria de um enigmático inconsciente filogenético, Klein defende uma exótica teoria sexual de cunho inatista, de acordo com seu pressuposto, algumas das deletérias afecções do psiquismo são causadas por esse “saber vago e confuso” que pré-existe na mente infantil. Honestamente dizendo, muito mais “vago e confuso” é essa concepção pansexualista, é evidente que essa crença pueril, foi sustentada por causa da idéia de que o complexo de Édipo é a base nuclear das neuroses, das perversões e psicoses, ou seja, os problemas existenciais, não são de fato existenciais, são verdadeiramente sexuais.

Essa visão reducionista foi fortemente questionada por Adler. Como já vimos no presente estudo, algumas propostas inovadoras de Adler foram retomadas pela escola revisionista americana e, acreditamos que o culturalismo tem o mérito de ter aprofundado tal discordância, ao mesmo tempo em que, foi capaz de oferecer uma organizada contra-teoria. É possível dizer que a partir da visão culturalista, uma base epistêmica pautada em um paradigma existencialista, foi proposto para substituir o velho paradigma anatomo-fisiológico do começo da psicanálise.

Nesse novo paradigma existencialista, todo e qualquer conhecimento do sujeito é construído empiricamente pela sua mundanidade. Para o indivíduo “ser”, necessariamente terá que “fazer”, sua ação mundana dialética produz o conhecimento, ao mesmo tempo em que o conhecimento produzido, também, produz o produtor.

Não existe um conhecimento sem intencionalidade, tanto em nível inconsciente, como, em nível consciente, todo saber é fruto da cultura. Os diversos “conhecimentos” culturais visam sempre um objetivo maior: adequar as ocorrências particulares e sem sentido, na estrutura de uma lei ou ordem teleológica ideal.

Tanto em Horney como nos demais culturalistas, não é um complexo de Édipo de teor sexual, que, serve como base para o desconforto neurótico, são as vivências desfavoráveis no sentido existencial que, infelizmente, farão uma criança se defender de maneira maníaca.

Falando das razões dos traços neuróticos numa criança, Horney disse:

 

Eles representam um modo de vida imposto por circunstâncias desfavoráveis. A criança sente-se forçada a desenvolvê-los a fim de sobreviver a sua segurança, seus medos e sua solidão; todavia, eles lhe dão uma noção inconsciente de que tem de aferrar-se a todo custo ao caminho traçado, pois do contrário sucumbirá ante os perigos que a ameaçam (Horney, 1984, p. 37).

 

Os traços neuróticos não são “herdados”, são construídos. Os mesmos equivalem existencialmente a uma leitura empobrecida do mundo, são sistemas orientacionais. Mesmo os sintomas neuróticos mais esdrúxulos, são formas teleológicas que seguem inconscientemente uma intencionalidade defensiva, a neurose é a cultura da “des-cultura”, é o grito desesperado por uma fusão natural perdida em algum momento do passado.

Embora, em sentido comparativo, as críticas sociais feitas por Horney, fossem normalmente mais brandas do que as produzidas por Fromm, ela não deixou de denunciar de forma muito contundente que a verdadeira causa do desconforto neurótico, reside na incapacidade parental de reconhecer e atender às necessidades da criança. Ela não deixou de demonstrar na maioria de seus livros que, essa deficiência afetiva, gerava diversas formas reativas, como a permissividade educacional e a superproteção.

Uma criança criada em um ambiente de desequilíbrio emocional, tenderá sempre a criar uma auto-imagem discrepante, pode se ver como um verdadeiro “deus”, ou no pólo contrário desse delírio, se sentir como um reles “demônio”. Horney acreditava que a única forma de curar uma neurose era modificando as bases sociais que a geravam. Sobre essa condição de formação ambiental ela escreveu:

 

O conflito entre o indivíduo e o ambiente não é tão inevitável quanto Freud supunha. E, quando aparecem tais conflitos, as suas causas não residem nos instintos do indivíduo, mas no fato de o ambiente inspirar temores e gerar hostilidade. As tendências neuróticas que, em consequência desses conflitos, os indivíduos desenvolvem, às vezes, proporcionam-lhes um modo de enfrentar o ambiente e, em outros, favorecem o desenvolvimento de conflitos. Portanto na minha opinião, os conflitos  com o mundo exterior não constituem, apenas, as bases das neuroses; eles constituem, isso sim, uma parte essencial das dificuldades neuróticas (Horney, 1966, p. 156).

 

O que é citado nesse último fragmento de Horney é algo muito importante para a psicanálise moderna, afinal, o psicanalista bem atualizado deve deixar de olhar apenas para a corporeidade pulsional de seus pacientes e, em sentido mais amplo, prestar a detida atenção na dinâmica familiar, em seus relacionamentos profissionais, na sua vivência amorosa, em suas crenças condutoras, enfim, deve ter uma visão holística sobre o universo relacional do consulente.

Diferente de uma teoria fechada e determinista, Horney é bastante otimista, semelhante a Adler e Sullivan, ela encara a personalidade como o resultado de diversas relações intrapsíquicas e extrapsíquicas, sendo assim, ao mudarmos nossa maneira de atuar existencialmente, podemos alterar grandemente, tanto a nossa história pessoal, bem como, influenciar positivamente outras histórias que se formam em nosso entorno.

Prof. Marcos Oliveira

 

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