O CAÇADOR INFIEL E O DRAGÃO

Autor: Prof. Me. Marcos de Oliveira

Numa terra distante, num tempo onde homens, mulheres e dragões disputavam um lugar ao sol, conta-se que uma intrigante história se deu. O núcleo desta história dramática envolvia um afamado caçador de dragões e o último dos dragões vivos daquela época mágica.

Estando diante do último dos dragões, o experiente caçador não foi capaz de dar-lhe um fim. O ser mitológico era colorido e belo, tão belo que pôde conquistar o bem-querer de seu inimigo natural. Apaixonado por esta extasiante e inusitada beleza, ao invés de matar o dragão, o caçador leva-o para sua casa. Estava decidido: além de preservar a vida desse ser mítico, iria morar junto com o mesmo até o seu último dia de vida.

Se a história ficasse congelada neste instante, teríamos o conhecido final romântico: “… e viveram felizes para sempre”, porém, o tom trágico deste conto se manifesta, quando, sem motivo aparente, o dragão acaba por comer seu distinto amante.

Um pouco antes de por fim à vida de seu companheiro, o dragão resolveu justificar com as seguintes palavras o seu ato:

– Perdoa-me pelo que te farei agora. Não te mato por falta de apego. Ao contrário disto, sinto-me muito apegado a ti. Porém, não posso negar a minha mais íntima natureza. Sou um dragão, por isso, propenso naturalmente a comer caçadores. Por seres um caçador, devo te devorar. Não posso ser infiel a minha natureza, meu destino é comer-te.

Um fim trágico, para uma história aparentemente tão bela!

Inventei este conto para ilustrar os caminhos habitualmente tortuosos da paixão.

Por meio da antagonia imaginária óbvia que existe entre um caçador e um perigoso e traiçoeiro dragão, intenciono ilustrar a abismal diferença entre o “amor” e a “paixão”.

O caçador do conto tornou-se infiel a si mesmo quando foi seduzido pela beleza hipnótica do dragão. Toda sua carência torna-se evidente na figura de seu amor inusitado pela fera. Por causa deste autoengano não foi capaz de discernir o perigo de sua paixão; morreu não por causa da índole da fera, mas sim, por desconhecer sua própria índole.

Análogo ao caçador de nossa história, o apaixonado é sempre um ser que se autodesconhece. Seu apego exagerado e normalmente repentino aos objetos de seu “amor”, não nasce da vontade simples e humana de querer compartilhar o melhor de sua vida com o outro, bem diferente disto, nasce do desespero de ver-se só.

Semelhante ao grande e notório caçador, que só conseguia ver-se como “grande”, na presença de um dragão, o apaixonado caça a vida inteira a figura dragoniana de seu amor idealizado.

Em quase duas décadas de atendimento psicanalítico em meu consultório, pude perceber como é forte a potência do autoengano de uma pessoa apaixonada.

O sujeito apaixonado praticamente “reconstrói” o objeto amoroso. Seus olhos na verdade, não enxergam uma pessoa, enxergam na realidade suas muitas ilusões projetadas numa superfície opaca; o apaixonado está enamorado pela sua própria capacidade de se autoenganar através do outro.

A beleza acachapante do amado é apenas uma desculpa para sua falta de amor próprio. Ao enxergar uma perfeição que parece preencher sua vida, esquiva-se de perceber seus muitos “vazios sentimentais”; finge amar “demais” o outro, para eclipsar sua real incapacidade de amar.

O colorido extasiante do dragão de nossa ilustração representa a figuração hiperbólica e multicolorida que o objeto amado ganha frente aos olhos do apaixonado, em sentido real, este colorido fulgurante do objeto não se dá pelas reais qualidades do objeto, na realidade são as muitas projeções do apaixonado, que “pavonizam” o objeto idealizado. É por isso que, por mais que apontemos os defeitos do “amado”, parece que o apaixonado mantém-se cego. Na realidade sua cegueira não ocorre pelo simples motivo de não poder ver, mas sim pelo motivo de ver apenas aquilo que está disposto a ver.

Infelizmente, como o objeto amado e desejado é apenas uma ilusão, as projeções colocadas sobre ele não se sustentam por muito tempo. Após tais projeções “despencarem” é comum o antigo objeto amado, passar a ser odiado, nesta fase do ódio, o apaixonado, contrariando sua forte propensão em autoenganar-se, começa a vislumbrar o objeto como verdadeiramente ele “é”.

Diferente do caminho mítico de heróis e dragões (sem falar das donzelas fúteis que esperam um salvador), o caminho do amor não pressupõe um cenário tão dramático. Todo verdadeiro amor é construído por pequenos detalhes. O amor é sempre uma condição mútua de crescimento dos amantes. Ama bem, aquele que reconhece o outro como um “meio” e não como um “fim” para sua realização pessoal.

O amor, diferente da paixão, mostra-se como um afeto que não ofusca a razão.

Quem ama, não precisa transformar “dragões” em “pombas”, escolhe olhar para a real natureza do amado; não pensa em converter magicamente um animal feroz em “bichinho de estimação” após o casamento. Ninguém muda a natureza de ninguém.

Nem a mais avassaladora paixão é capaz de alterar a real natureza dos amantes, no máximo, à custa de um entorpecimento passageiro, a paixão tem o poder de ocultar momentaneamente, aquilo que cedo ou tarde se revelará.

Assim, aprendamos olhar para as coisas como elas são no amor; não somos transmutadores da história do outro. Tornar-se fiel a sua própria história, consiste, antes de qualquer coisa, em matar o terrível dragão das expectativas exageradas em relação ao outro.

PALAVRAS OCAS E AFETOS QUE FALAM

Autor: Prof. Me. Marcos de Oliveira

Desde os primórdios da psicanálise, a relação afetiva entre os primeiros cuidadores (pais) e a criança, fenômeno este considerado à base da formação do caráter, tem sido exaustivamente estudado e, Freud, o fundador desta ciência, desde seus primeiro trabalhos, salientou que existe uma estreita relação entre a sanidade mental e o tipo de relação afetiva vivenciada pela criança  em formação.

A transferência afetiva mútua entre pais e filhos, representa para a vida psíquica da criança o mesmo que o alimento representa para o corpo, assim, da mesma forma que a desnutrição coloca em risco o desenvolvimento do organismo debilitado, a vida mental sem a doação afetiva morre.

Mas afinal, em que consistiria essa enigmática e tão vital “doação afetiva”?

Em sentido básico, doár-se afetivamente significa, grosso modo, estar genuinamente interessado. Ao nos relacionarmos com nossos filhos, é fundamental uma integração emocional plena de nossa parte.

No início da vida mental existe uma relação emocional peculiar entre o infante e os que dele cuidam, chamamos tal estado de integração emocional de “empatia”, fenômeno que pode ser descrito como um tipo de “contágio emocional”.

Assim, o ambiente primário de formação modela o infante a partir de uma espécie de “comunicação emocional silenciosa”, por isso, tanto uma atitude favorável de acolhimento, como seu oposto, uma atitude desfavorável de desamparo, determinará certas linhas evolutivas da personalidade em formação.

Desta maneira, nossas crianças “conhecem” o tipo de cuidadores que somos, não pelas belas palavras que proferimos, tentando assim influenciá-las pedagogicamente, mas sim, pela verdade afetiva que transmitimos através de nossas atitudes emocionais mais íntimas, sendo estas, estados afetivos sutis, os quais, muitas vezes, são totalmente ignorados pelos pais e educadores.

Por isso, coisas que nem mesmo foram faladas de forma direta, são refletidas na criança.  A discordância oculta entre os pais, à falta de disposição afetiva em relação aos filhos (falta esta que é sentida muitas vezes como uma rejeição pela criança), desejos reprimidos oriundos de uma sexualidade mal resolvida do casal, entre outras dificuldades relacionais, acaba por produzir na criança um estado afetivo deletério, estado emocional negativo, que às vezes se manifesta por sinais objetivos de depressão e ansiedade.

Por outras palavras, grande parte da modelagem ambiental que a criança sofre é executada inconscientemente. Sem que nos apercebamos, nossas muitas incertezas e instabilidade emocional se transferem para os nossos filhos. Em grande parte das vezes, os distúrbios da infância são reflexos distorcidos de conflitos familiares mais amplos, de certa maneira, os filhos sempre serão “sintomas”, do que os pais foram afetivamente para eles.

A escola, por ser o ambiente de formação funcionalmente mais próximo do lar, é normalmente o palco de inúmeras manifestações sintomáticas; não é raro que educandos afetados por uma dinâmica familiar inadequada, manifestem diversas dificuldades interpessoais. Alguns desenvolvem, por causa de uma forte insegurança interna, normalmente originada de uma instabilidade familiar, uma atitude introvertida em relação aos professores e demais colegas. Como esses introvertidos perderam a confiança em seus cuidadores primários, e, a sua crença na estabilidade dos vínculos afetivos encontra-se abalada, essa desconfiança latente acaba por se deslocar para os outros. Infelizmente esta postura “subjetivamente fechada“ habitualmente culmina num ruidoso isolamento relacional.

Na linha oposta aos introvertidos, outras crianças afetadas tornam-se agressivas, e em alguns casos, até mesmo sádicas. Normalmente tal modelo é a repetição de um modelo familiar agressivo, mas em outros casos, os cuidadores primários não são propriamente agressivos, mas sim permissivos.       Neste caso, tais pais superprotegem mimando seus pequenos “anjinhos”.  Por serem fracos, os pais permissivos tornam-se incapazes de reprimir positivamente uma certa quantidade de agressividade inata de seus filhos.       Essas crianças super protegidas habitualmente encontram uma grande dificuldade em lidar com suas reais limitações e, como deslocamento defensivo, acabam por não reconhecer como positiva nenhuma autoridade limitadora de seus “super poderes”.

Poderíamos continuar a enumerar as infinitas possibilidades sintomáticas que nascem de uma dinâmica familiar enferma, porém, acreditamos que os aspectos abordados no presente artigo, são suficientes para ilustrar o quanto os distúrbios infantis estão imbricados aos inúmeros “conflitos ocultos” dos pais.  Às vezes o silêncio afetivo que é sentido no núcleo familiar, e, que causa dor psíquica ao afetado, é sintomaticamente substituído pela sonoridade despersonalizante das neuroses.  Daí o princípio, onde o amor cala, a doença fala.

É certo que essa nova consciência aumenta muitissimamente a nossa responsabilidade afetiva em relação aos nossos filhos, afinal, cobrar equilíbrio de nossos filhos, sem exigir o mesmo para nossas vidas, é uma forma de repetir inconsequentemente a quadra de Fernando Pessoa que diz: “Se eu pudesse te dizer / Aquilo que nunca te direi/ Tu poderias entender/ Aquilo que nem eu sei”.

DIALÉTICA DA INCERTEZA

Autor: Maria Aparecida Fagundes

DIALÉTICA DA INCERTEZA Este trabalho versa sobre as incertezas que rondam a civilização. Inversão de valores, conflitos sociais, guerras motivadas pelo poder, sobrevivência e pela ambição, mudança de paradigma em vários setores, principalmente nas inter-relações. Algumas inquietações são apresentadas com intento de chamar atenção de outros saberes, para um olhar cirúrgico nas questões do ser humano, uma vez que, o homem é o genitor e ao mesmo tempo vítima das mazelas do seu meio. Um dos sintomas que a sociedade está doente é o alto nível de patologias psíquicas. O jogo de forças opostas não permite intervenção efetiva e o saneamento dos conflitos. Foi escrito com base no pensamento de Sigmund Freud, que já pensava a civilização a mais de um século. Erich Fromm que também reflete o comportamento do homem com profundidade. Sergio Paulo Rouanet pesquisador da psicanálise, que instiga a mesma imputando grande responsabilidade na difícil tarefa de prover mudança na malha social que está porosa, frágil carecendo de mudanças. Palavras-chave: Psiquismo, conflito, sociedade, psicanálise,

 

 

A elite global quer eliminar 80% da humanidade. Mensagem cravada na pedra de granito, Georgia Guide Stones, EUA. Essa mensagem nos remete a pensar que o globo terrestre está no “limite” demográfico. Consequentemente se avizinham os problemas oriundos da concorrência  entre povos. O ser humano é, por natureza, competidor não apenas para conquistar o seu quinhão, mas para dominar e subjulgar o seu igual. A frase que inicia este texto exemplifica essa dinâmica. Competir, discordar, eliminar para chegar à “gloria”. Que glória? se o desejo é deslizante e montado a partir de várias matrizes.

Desde a revolução industrial o mundo passou por mudanças significativas. A forma de produção e a gestão de pessoas  assumiram caráter perverso.  Os povos atrasados por sua pobreza e invisibilidade histórica, sem voz ativa, tiveram que se submeter aos ditames dos  detentores do poder. O que gerou um conluio silencioso montado a partir de forças e fraquezas. As pessoas livres não necessitam de libertação e “as oprimidas não são suficientemente fortes para libertarem-se”.

O relacionamento entre os contratados e contratantes deixou de ser cordial para ser burocrático, desumanizando as relações. Segundo Erich Fromm “o que vemos hoje é uma grande máquina de produzir”, o elemento humano foi reduzido a um crachá. Os homens são olhados como produtores e consumidores. Pouco interessa aos capitalistas os sintomas destrutivos que acometem a sociedade em âmbito global. Como desdobramento desse processo podemos observar patologias graves como, por exemplo, o imperialismo, o belicismo americano, o crescimento do fundamentalismo, a intolerância e o nazismo.

Nos países subdesenvolvidos vemos com lentes de aumento os resquícios sórdidos do colonialismo, a exploração e manipulação de pessoas, inclusive crianças, que são tratadas meramente como números em detrimentos do enriquecimento dos “donos do mundo”. O Estado, com seu poderio gigantesco, deveria volver o olhar para os ‘sem vez’, flerta o tempo todo com o capital e faz o jogo dos empresários. Cresce a revolta e a descrença de pessoas que desconhecem métodos de organização que poderia promover a edificação da sociedade. Dessa forma a grande massa desassistida sai em busca do seu quinhão usando descaminhos, a força e a violência. Assim notamos que a liberdade de ambos os lados está ameaçada.

No último século a tecnologia passou por um avanço inimaginável, concebendo equipamentos abarcados de recursos para auxiliar o homem nas tarefas cotidiana, encurtar distâncias e conectar-se com o mundo. Em contrapartida o desenvolvimento humano ainda não se mostrou efetivo. Cotidianamente a mídia nos mostra atos humanos que nos chocam e envergonham. Por exemplo, Militares que são condecorados e recebem aumento de soldo por matarem centenas de seres humanos. Esse é um exemplo de grande visibilidade em época de guerra. Entretanto, no dia a dia a crueldade e a frieza assombra a todos, cito o tráfico de pessoas que só perde para o tráfico de drogas. A violência contra mulheres, a corrupção de percorre o mundo.

A mediocridade está estabelecida em todos os setores, como véu impede a visão aguda, a reflexão, o autoconhecimento. A mídia, que está serviço do capital, exerce a violência simbólica, bombardeia a mente das pessoas, deixando-as vazias de si e preenchendo-as com falsas promessas de felicidade, cuja finalidade meio e fim é o consumo, num processo que se retroalimenta . As pessoas são conduzidas como rebanho neste jogo onde só há um ganhador. Esse sistema perverso aprisiona com a falsa ideia de liberdade. Cria necessidades e desconstrói a autoimagem para que o individuo caia na esteira do consumo.

Igualmente observamos as regras do capitalismo aplicadas nas relações humanas. Onde as pessoas se relacionam de forma utilitarista, os vínculos afetivos estão cada vez mais voláteis, as pessoas entram em obsolescência em curto espaço de tempo. Observamos essa dinâmica no mercado de trabalho e nas inter relações. Como consequência há um esvaziamento de energia vital. A vida já não é tão preciosa, não há mais o planejamento para o futuro porque o futuro é agora. Uma das consequências é o alto índice de suicídio.

Diante dessas questões surge a inquietante pergunta a quem compete cuidar do futuro civilização? Numa resposta precipitada diríamos que compete aos governos eleitos para essa finalidade. Será que é de responsabilidade apenas dos governos? Ou será que as diversas áreas do conhecimento tem a obrigação de dialogar e buscar encaminhamento para os grandes problemas da humanidade?

Sigmund Freud evidenciou essa preocupação no livro O Mal Estar na Civilização e Futuro de uma Ilusão, “se esforçou para entender as macro estruturas e os fatores condicionantes da sociedade” como é dito na entrevista de Rouanet.  A mais de um século já havia por parte do criador da Psicanálise, um olhar voltado ao bem estar da civilização. Principalmente porque ele viveu numa época de grande perseguição e sofrimento promovidos pela Segunda Guerra. Entretanto, ele pondera a dificuldade de conciliar a manifestação instintual do homem na sociedade, pontilhada por regras e costumes.

Por muitos anos a psicanálise convergiu para o individuo, como se este fosse um mundo à parte. Faz-se mister lembrar que individuo é parte de um todo e só existe se for inserido na cultura.  Portanto, tratar um indivíduo por anos e devolvê-lo a uma sociedade doente poderá ser infrutífero. Essa reflexão levou a psicanálise intercambiar com outros saberes como, antropologia, sociologia e linguística, uma vez que, é preciso olhar o homem na sua totalidade com as inúmeras variáveis que modelam o caráter. Não é possível compreender o individuo sem pesquisar a sua história. Assim como não possível projetar o futuro sem analisar o contexto atual os novos paradigmas que estão sendo incorporados pela civilização. As crenças e as fantasias, citadas Nos Três Escrínios (Freud, 2008), como recursos auxiliar no equilíbrio do Eu estão se enfraquecendo.

Em seu livro “A descoberta do inconsciente social”, (Erich Fromm 1992), analisa as principais descobertas de Freud, que contribuem significativamente para entendermos o que se passa no mundo. “O comportamento do homem é amplamente determinado pelos impulsos, essencialmente irracionais, que entram em conflito com sua razão, padrões morais e padrões sociais”.

“Enquanto atua, o homem sente e pensa de acordo com forças inconscientes. Os impulsos instintuais para controlar e dominar estão no núcleo do seu processo inconsciente e obedecem a regência do instinto de sobrevivência, presente em todos os seres vivos”. Partindo dessa afirmação, é possível entender que a elite global, ao perceber a aproximação do “limite demográfico” e a consequente ameaça às condições de sobrevivência, considere a possibilidade de eliminar a maior parte da população, justamente a mais fraca e a menos competitiva.

Destacamos que a base da sobrevivência é inconsciente, mas o desejo de eliminação dos mais fracos é plenamente consciente.            Outro aspecto a ser considerado é o conflito entre as ideias conscientes do homem sobre o mundo e sobre si mesmo. As forças de motivação inconsciente rompem o pretenso equilíbrio entre o Eu e a sociedade, e produz patologias psíquicas como neuroses e impulsos de destrutividade, que impedem a percepção consciente de que, ao destruir seu semelhante, o homem, simultaneamente, destrói a sí mesmo.

Se atentarmos para o fato de que uma parcela significativa dos avanços tecnológico foi destinada à destruição, percebemos o paradoxo da orientação humana que, ao mesmo tempo em que descobre e produz recursos para viabilizar e melhorar a vida, também aumenta o risco de se autodestruir.

Partindo de uma visão realista o comportamento humano tende a continuar na mediocridade porque não é simples fazer a travessia para o autoconhecimento. Ao analisarmos a história das civilizações, constatamos que elas se desenvolveram até certo ponto e depois declinaram e desapareceram. Não seria a humanidade uma única e grande civilização que também chegaria ao fim?

Sabe-se que a vida em si não tem sentido algum, e que nada existe no externo capaz proteger ou determinar a existência. Portanto, compete ao homem encontrar as soluções para seus problemas existenciais. Haverá futuro para a ilusão? Qualquer que seja a resposta estará correta, pois o homem é o único arquiteto do seu universo social. Quais as oportunidades, investimentos, estratégias são destinadas à população para que todos se beneficiem da malha social sustentável? Como foi citado o psiquismo saudável depende de inúmeras variáveis e a maior certeza é a predição de um futuro incerto.

 

 

REFERÊNCIAS

Documentário Georgia guide Stones <http://www.youtube.com/watch?v=fbUWCnsidD0> acesso em:, 08 out.2012

Filho, Juvenal, Manual para elaboração de trabalhos acadêmicos

Freud, Sigmund, O caso schereber, artigos sobre a técnica de outros trabalhos. Edição Standart Brasileira das obras psicológica Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,1988.

FROMM,Erich, A descoberta do inconsciente social. São Paulo: Manole,1992.

MARCUSE, Herbert, Prefacio politico1966. In: Eros e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar,1966.

Oliveira, Marcos. Aulas ministradas no curso de Psicanálise Holística. São Paulo: 2012.

ROUANET, Paulo Sergio, Dupla utopia psicanalítica.  Revista Percurso, São Paulo:  nº. 33.

A PSICANÁLISE CULTURALISTA

Autor: Prof. Me. Marcos de Oliveira

Seria possível uma aproximação gnosiológica entre psicanálise, antropologia e sociologia? E, admitindo tal avizinhamento, quão frutífera se mostraria essa intrigante intersecção epistêmica?

Tentaremos mostrar nas próximas páginas que, a linha teórica que se celebrizou com epíteto de “culturalismo psicanalítico” é, em suma, a materialização das respostas para as interessantes inquirições propostas.

Antes, porém, de estudarmos propriamente o culturalismo psicanalítico, é importante que se diga, que, desde o início de seus revolucionários questionamentos, Freud ao falar, tanto do indivíduo normal, como, do indivíduo neurótico, mostrou vívido interesse em pesquisar as relações causais entre o indivíduo e a coletividade. Seu famoso conceito de “Superego” é a prova clara da importância que Freud conferiu à estrutura social, na formação do sujeito humano. Porém, seu interesse em buscar as causas das neuroses no “corpo” e não nas relações sociais, é evidentemente claro em seus primeiros trabalhos.

Freud, em sua primeira fase anatomo-fisiológica, deu uma excessiva importância ao “modelo biológico reflexo”, este paradigma foi usado tanto para explicar o surgimento do psiquismo, como também, para entender de forma determinista o funcionamento do inconsciente pessoal.

Esse reducionismo biologizante é facilmente percebido quando Freud fala de uma das teorias mais importante da psicanálise: a teoria psicanalítica das pulsões.

Sobre esse controvertido tema, podemos ler o seguinte em Freud:

 

…Por “pulsão” podemos entender, a princípio, apenas o representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente, para diferenciá-la do “estímulo” que é produzido por excitações isoladas vindas de fora. Pulsão, portanto, é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico. A hipótese mais simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão seria que, em si mesma, ela não possui qualidade alguma, devendo apenas ser considerada como uma medida de exigência de trabalho feita à vida anímica. O que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedade específicas é sua relação com suas fontes somáticas e seus alvos. A fonte da pulsão é um processo excitatório num órgão, e seu alvo imediato consiste na supressão desse estímulo orgânico (Freud, 2002, p. 46).

 

Podemos perceber no texto supracitado, a importância dispensada por Freud em distinguir entre o “estímulo” e a representação psíquica deste estímulo, que, é nominada por ele de “pulsão”. É dito também, que pulsão é um conceito intermediário entre o físico e o anímico, porém, no trecho apresentado, Freud não explica o que devemos entender por anímico, ou, o que de fato ele queria explicitar conceitualmente quando diz que pulsão é um “representante psíquico”.

Comentando o uso do termo alemão “trieb” e sua consequente tradução como “pulsão” no português, o erudito Luiz Hanns tece o seguinte comentário:

 

A tradução de trieb é uma das mais polêmicas, devido à extensa gama de significados e conotações do termo em alemão, bem como devido a peculiaridades no emprego freudiano do termo.(…) Em alemão podem-se designar com a palavra trieb diferentes dimensões e formas pelas quais as forças impelentes da natureza podem se manifestar.Tais forças podem, esquematicamente, ser classificadas em quatro níveis de manifestação: da natureza em geral, do biológico nas espécies, no indivíduo da espécie e para o indivíduo. Cada nível também produz em si uma escala que conduz do mais geral ao mais específico.(…) Se utiliza o trieb para aludir à manifestação da natureza no indivíduo como fenômeno fisiológico e somático (os estímulos, os reflexos, a energia circulante etc.) e finalmente para nomear a representação desse conjunto articulado, quando sentido ao nível íntimo e singular pelo sujeito como ânsia, impulso de vontade.(Hanns, 1996, p. 350)

 

Frente ao comentário acima, fica evidente que (fora à polissemia do termo “trieb”), essa palavra, tem a conotação em Freud, de algo que surge como um fenômeno físico e orgânico e pela sua natureza elástica, se desdobra na mente como uma exigência de trabalho psíquico.

Assim, embora o termo trieb às vezes no alemão se aplique aos nossos “instintos”, Freud em sua teoria pulsional, fala de algo que vai além do somático. Embora o fenômeno pulsional comece ligado aos processos fisiológicos, a pulsão é o instinto que se desnaturaliza e se transforma em uma representação mental, nessa passagem do orgânico para o mental, inaugura-se à estrutura subjetiva do ser.

Infelizmente, ao estudar a formação da subjetividade humana, Freud desconsiderou a influência do meio social na formação de suas “enigmáticas representações”, por isso, não soube diferenciar as primitivas “representações-memória”, das posteriores “representações–afeto”, criadas nas inter-relações desenvolvidas durante a maturação psico-afetiva da infância.

Portanto, o conceito de pulsão como algo capaz de produzir uma “representação mental”, só faz sentido quando a pulsão-representante é capaz de representar o sujeito ao próprio sujeito e, essa auto-representação “para-si”, só é possível quando ultrapassamos o corpo biológico e, descobrimos a partir do “tu”, um corpo preparado pela cultura.

No culturalismo a pulsão não tem nunca a sua satisfação meramente no “corpo físico”, bem ao contrário disso, as representações mentais quando deixam de ser meras memórias sensíveis e, passam a ser a recriação dialética de uma vivência particular e subjetiva, se estruturam num plano teleológico. Em outras palavras, a “anatomia não é o destino das pulsões”, as representações pulsionais são modeladas a partir de uma orientação cultural específica e se direcionam inconscientemente a uma meta cultural.

O questionamento sistemático e profundo das bases ontológicas do ser levou os culturalistas a repensarem o modo pelo qual o sujeito chega a ser sujeito. Ao invés de uma evolução natural de uma coisa inconsciente, que se torna consciente, no culturalismo o infante é inicialmente um predicado e, ao dar-se seu desenvolvimento e assujeitamento pela aculturação, torna-se enfim “sujeito”.

Essa idéia central de “desnaturalização dos instintos”, foi basicamente o motivo inicial do surgimento do culturalismo. Nas próximas linhas abordaremos quais os principais questionamentos dessa escola.

 

               Alfred Adler e o Culturalismo

Ao estudar as neuroses, Freud mostrou particular atenção em entender como se dava o desenvolvimento da criança junto a sua constelação familiar. Embora tenha demonstrado interesse também em conhecer qual o peso da influência social na formação do caráter, nunca considerou as descobertas sociológicas importantes para fundamentar as suas teorias, embora, é justo ressaltarmos que, quando Freud desenvolveu suas principais teorias, tanto a sociologia, como a antropologia, estavam elaborando ainda as suas primeiras conclusões epistêmicas.

O primeiro teórico a demonstrar a importância das relações sociais na formação de nosso senso identitário foi Alfred Adler, embora ele não possa ser alistado propriamente como “membro” da escola culturalista, suas inovadoras “teorias culturalistas” influenciaram fortemente os principais ícones da escola norte-americana de psicanálise culturalista.

Alfred Adler, nasceu em 7 de fevereiro de 1870 em Viena e, faleceu no dia 28 de maio de 1937 em Aberdeen (Grã-Bretanha). Este corajoso austríaco foi o primeiro dos discípulos de Freud a discordar formalmente do criador da psicanálise e a aventurar-se em uma trilha solitária e íngreme (Hanns, 1996).

Na teoria adleriana o homem é concebido como essencialmente um ser social, por isso, o interesse social é inato, a relação cooperativa com os semelhantes é vista por Adler como a base central da sanidade mental (Hall, 1974).

Adler conferiu pouca importância à libido sexual de Freud. Em seus escritos e conferências, não deixava de ressaltar que mesmo a sexualidade era mais usada como manifestação de um impulso inconsciente de poder, do que propriamente com uma objetivação puramente sexual.

Corajosamente ele dessexualizou o ser humano em sua teoria; para ele, mais importante que a sexualidade infantil, era a qualidade relacional vivida pela criança em seu meio.

Os complexos não se formavam por causa da repressão da libido, e sim, a libido sexual era reprimida muitas vezes por causa dos complexos; a verdadeira etiologia dos complexos mentais para Adler, advinham de sentimentos de inferioridade não superados no processo de maturação egóica.

Foi esse valoroso teórico que ofereceu à psicanálise o interessante conceito de “complexo de inferioridade”.  Resumindo tal noção, Adler dizia que, o excesso de mimo, ou o seu oposto, a falta de afeto, levavam inconscientemente a comportamentos compensatórios anormais, a neurose e a psicose, eram máscaras que cobriam temporariamente um angustiante senso interno de inferioridade.

Diferente de Freud, que ligava as representações mentais em sua origem a fontes endógenas, Adler como um grande pioneiro, mostrou que o ambiente emocional externo, bem como, as condições materiais do infante, influenciava poderosamente a formação de nossa subjetividade.

Adler foi muito influenciado pela tese sociológica de Karl Marx, por isso, acreditava que as representações ideativas eram um efeito colateral da materialidade ambiental que cercava o infante desde seu nascimento. A ideia de que a consciência é um epifenômeno da vida material, é facilmente percebida num trecho escrito por Marx: “A produção das idéias, representações, da consciência está a princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens linguagem da vida real” (Marx, 1984, p. 22).

Como Marx, Adler via na vida social a base fundadora de nossas ideações. A relação dialética entre o mundo e o sujeito é de suma importância em Adler, para ele, o objeto é significado valorativamente enquanto objeto relacionado a um sujeito, e o sujeito é tal e qual, a partir das relações que tem com os vários objetos mundanos.

Filosoficamente dizendo, Adler não reconhece a existência de um objeto puro, pois ele precisa ser visado pela nossa subjetividade para ganhar significância; nem aceita a hipótese se um sujeito puro, o mesmo, só assume seu papel de “animal significador” ao conferir sentido aos objetos, assim, tanto o sujeito, como também, o objeto, são frutos de uma ontológica relação dialética desenvolvida no âmbito da cultura.

Portanto, de certa forma, todo conhecimento constitui um objeto “visado”, nenhum conhecimento humano é capaz de conhecer o objeto “em si”, puro, como ele é.

Essa visão culturalista levou Adler a perceber que nossas muitas “certezas” e “verdades”, não passam de “ficções condutoras”, sistemas orientacionais criados pelo próprio ser humano. Muitas dessas ficções, inclusive, se prestam ao papel de ideologias de dominação, isso é facilmente ilustrado, citando o comentário de dois grandes historiadores modernos, lemos:

 

Outra grande diferença entre Adler e Freud estava na visão sobre a mulher. Adler afirmava não haver razão biológica – como, por exemplo, o conceito de Freud acerca da inveja do pênis – para justificar o sentimento de inferioridade da mulher. E afirmava ser esse um mito inventado pelo homem apenas para sustentar o próprio sentimento de superioridade. Qualquer sentimento de inferioridade da mulher resultava dos fatores sociais, tais como o estereotipo da mulher sensual. Adler acreditava na igualdade dos sexos e apoiava os movimentos de emancipação feminina daquela época (Schultz, 2005, p. 400).

 

Certamente Adler era um homem dotado de uma aguda visão intelectiva, ele estava bem à frente de seus contemporâneos. Indo contra o próprio Freud, ele dissolveu com sua potente teoria, a nefasta aparência de naturalidade da crença da “inferioridade da mulher”; tal pressuposto, era segundo seu viés revolucionário apenas uma criação humana, não parte da estrutura natural da mulher.

Foi Adler quem ensinou a psicanálise, que diferença não é necessariamente nem inferioridade, nem superioridade, diferença é tão somente diferença.

Ao questionar a inveja do pênis como um fenômeno biológico na estrutura feminina, ele lançou base para a idéia de que os “complexos” são montados pela nossa relação com a sociedade, tal visão revolucionária deslocou a importância etiológica dada aos instintos na formação das neuroses, para uma formação produzida em reação aos modelos culturais.

Em seu interessante livro “A Controvérsia Freud-Adler”, o escritor Bernhard Handlbauer, comentando sobre o “instinto agressivo” de Adler, faz notar a evolução conceitual de algumas de suas polêmicas teorias, é dito o seguinte:

 

O “instinto agressivo” de Adler flui em seus posteriores conceitos de protesto masculino, “empenho pelo poder” ou “empenho pela superioridade” que, no entanto, não mais define instintos biológicos. O significado da sexualidade se perdeu extensivamente na forma de pensar de Adler. Da mesma forma, Freud e seus estudantes não se deram ao trabalho de levar adiante as sugestões de Adler a respeito do relacionamento entre agressão e sexualidade (Handlbauer, 2005, p. 70).

 

A inveja do pênis que Freud concebia como inata, é transformada em um “protesto masculino”, uma crença de inferioridade criada pela cultura patriarcal. Adler reconhecia a existência de um instinto agressivo, esse em sua essência era neutro, porém, tal instinto quando ajustado a certa cultura, podia ser transformado em uma “ânsia de domínio”, por isso, a vontade que algumas mulheres demonstravam de ser “homem”, era apenas à vontade de dominar e, assumir o lugar social do “macho dominador”.

Essa “vontade de poder”, embora brote do instinto de agressividade, é uma volição existencial orientada culturalmente. Vontade é sempre vontade de alguém por algo e,  assim, essa “vontade de poder” sempre se efetivará num quadro orientacional oferecido pela cultura, assim sendo, a ânsia de domínio é fabricada parcialmente nas relações mundanas entre o ego e o mundo social.

Falando da situação da criança no mundo Adler descreve da seguinte forma tal fenômeno:

 

Desde a mais tenra idade, passa a perceber que existem outros seres humanos capazes de satisfazer completamente suas necessidades mais urgentes, melhor preparados para viver. (…) a criança aprende a dar valor excessivo ao tamanho que habilita uma pessoas a abrir uma porta, ou à força que habilita a transportar objetos pesados, ou ao direito de dar ordens e exigir obediência. Desperta em sua alma um desejo de crescer, de ficar tão forte como os outros, ou mesmo mais forte ainda. Dominar aqueles que vê junto a si faz-se então seu principal propósito de vida (Adler, 1957, p. 45).

 

Ao ter contato com a realidade externa, o infante é obrigado a crescer e a dominar coisas, a relação qualitativa, bem como, o seu direcionamento teleológico, será construído no seio destas múltiplas relações. Ao se deparar com um ambiente hostil que ressalta pejorativamente sua inadequação humana, ou mesmo ao perceber exigências desrazoáveis da parte dos adultos, a criança pode se identificar com sua pretensa inferioridade e, transformar desta maneira, a ânsia de domínio no seu oposto; se isso ocorrer o infante pode desenvolver um recolhimento na timidez, pode se mostrar excessivamente submisso ou, pode desenvolver uma devoção exacerbada, enfim, assumir uma postura masoquista.

O contrário disso também pode acontecer. Uma criança pode esconder seu complexo de inferioridade por detrás de uma máscara de superioridade, nesse caso desenvolverá uma atitude de dominação em relação às pessoas e as coisas ao seu redor, mesmo o prazer sexual será nesse caso, uma manifestação desdobrada da ânsia de poder.

Tanto o masoquista, de uma forma passiva, como o sádico, de forma ativa, buscam o domínio, tentam dominar a sua própria ansiedade e, ao mesmo tempo, tentam exercer poder sobre os objetos.

O complexado sofre na verdade de uma “neurose de poder”, o poder-ser é confundido com o poder-ter. A ordem teleológica produtiva do para-ser é bloqueada, como imitação da produtividade egóica, o neurótico vive para ter. Aquilo que não consegue produzir no âmbito de sua intimidade, busca produzir e acumular materialmente, para compensar no externo, o que lhe falta internamente.

Com Adler aprendemos que nossos movimentos como seres mundanos, dependerá do tipo de “mundo social” que vivemos, afinal, toda e qualquer ficção condutora mental,  depende da cultura que serve como base geradora das categorias teleológicas. Isso foi dito por ele nas seguintes palavras:

 

A mente não conhece nenhuma lei natural já que o objetivo está sempre mudando. Se, porém, um indivíduo tem um objetivo constante, nesse caso cada tendência psíquica deve sofrer certa compulsão, como se alguma lei natural a influenciasse. Leis que governam a vida psíquica existem – mas são leis feitas pelo homem (Adler, 1957, p.32).

 

O homem não é determinado pelos seus instintos, seus comportamentos e anseios existenciais são mutáveis, seus desejos nascem da cultura. O homem é o único ser que se determina a si mesmo através de um “outro” que lhe é semelhante, porém, similitude não é igualdade, é na razão crítica daquilo que é desigual, que aprendemos pela força de uma negação estrutural, a nos afirmamos idênticos a nós mesmos. É por esse artifício criado pela cultura que nasce o “eu”.

Em Adler, o contato afetivo do ser com o mundo “real”, depende das “leis mentais” que regem inconscientemente a ação teleológica de cada indivíduo, por sua vez, tais leis serão o resultado da soma relacional entre o eu e a sua sociedade. Por isso, diferente de uma visão fisicista ingênua, o dinamismo afetivo transferencial ganha uma nova conotação na teoria adleriana.

A dessexualização da vivência psíquica foi um grande avanço. Com isso a psicanálise ganhou uma base existencialista para suas teorias, o ser humano deixou de ser pensado como mero fruto de instintos primitivos, ao contrário disso, não é tanto sua base primitiva que o afeta, é a impossibilidade existencial de transformar o primitivo em algo “novo” que de fato faz diferença.

Adler abre campo para pensarmos o eu como uma base flexível, com suas teorias culturalistas ele mostrou que muito do que Freud via como parte constituinte do ser, era na verdade produto de tentativas de adaptação, bem mais do que sua base fixa e biológica, o contato com o “mundo de fora” é o que determina parcialmente o que somos.

Mas afinal, o que verdadeiramente somos?

Seguindo o caminho iniciado por Adler, a escola culturalista norte-americana, desde o começo tentou oferecer uma resposta para a intrigante inquirição existencial em questão. Os teóricos desta escola ampliaram muitissimamente as pioneiras conclusões de Adler, bem como, ofereceram algumas inovadoras propostas.

 

            O Culturalismo Psicanalítico

Com a crescente ameaça de guerra, e, com o fortalecimento do nazismo, a grande maioria dos psicanalistas europeus se retiraram da Europa em busca de maior proteção, com tal êxodo, a Inglaterra e os Estados Unidos converteram-se nos dois maiores centros de estudos psicanalíticos.

De acordo com Clara Thompson, a guerra trouxe muitas limitações; a dificuldade de transporte, a escassez de papel, entre outras dificuldades, impossibilitou uma colaboração ativa entre os dois supracitados centros, essa distância criou base para uma evolução um tanto independente dos dois polos (Thompson, 1969).

Três grandes nomes contribuíram de forma decisiva para o surgimento do culturalismo: o médico psiquiatra Harry Stacy Sullivan, o filósofo social Erich Fromm e a clínica geral Karen Horney.

Sem dúvida nenhuma Fromm, dos três nomes citados, foi o teórico mais significativo, ele influenciou profundamente Horney em suas teorizações. Sullivan embora tenha sido o que menos expôs suas idéias literariamente, manteve uma certa distância epistêmica tanto em relação a Fromm, como também, das teses desenvolvidas por Karen Horney.

Em 1943, Sullivan fundou junto com Clara Thompsom, Erich Fromm, Frieda Fromm-Reichmamm, Janet e David M. Rioch, o William Alanso White Institute, a instituição responsável pelo ensino e divulgação da psicanálise interpessoal (Mijolla, 2002)

 

             Sullivan e Sua Análise Interpessoal

Como teórico, Sullivan foi fortemente influenciado por Freud, bem como, por alguns outros vultos de peso como o filósofo social George Mead, os antropologistas culturais Edward Sapir e Ruth Benedict, o sociólogo Leonard Cottrell, além é claro, do renomado neuro-psiquiatra William A. White (Hall, 1974, p. 159).

Diferente de muitos de seus contemporâneos que, romanticamente acreditavam em um “verdadeiro eu”, como uma essência pura, Sullivan fala de uma essência que será criada como produto de interação com a nossa base social.

Assim, Sullivan descreve a personalidade como “um padrão, relativamente constante, de situações interpessoais periódicas que caracterizam a vida humana” (Hall,1974, p.158).

De uma forma muito original, Sullivan diz que o que chamamos de personalidade é meramente uma “entidade hipotética”, ou seja, o “eu” seria uma ficção aglutinadora de nossas inúmeras máscaras sociais, sendo assim, só podemos entender e estudar o eu a partir do comportamento interpessoal. O eu como uma entidade isolada das situações interpessoais, não passaria de um “fantasma” criado pelas nossas vagas abstrações.

Sullivan por discordar da visão instintivista de Freud, concebe uma base dialética e flexível para o eu. Em suas teorias, o eu não é nunca uma “inteireza”, ou um “bloco de certezas”, bem ao contrário dessa visão estática, Sullivan nos apresenta um dinâmico centro organizador de nosso senso de pessoalidade, núcleo ordenador este, ligado a uma estrutura egóica sempre aberta em busca de novos desdobramentos existenciais.

Portanto, o indivíduo é a soma (e por que não a subtração) de suas relações interpessoais, sua formação identitária é fruto de diversas e variadas identificações; dentro de todos nós por isso, há um discurso montado por “várias vozes” ouvidas e assimiladas durante nosso contínuo percurso existencial, em outras palavras, todo aquele que sustenta sua vida mental às custas de um “monótono solilóquio” é um verdadeiro alienado; o monoideísmo mental gera uma única versão da existência, o que essencialmente atenta contra as múltiplas manifestações do eu.

Essa visão multifacetada do eu, anula a clássica inquirição existencial: quem sou eu? – afinal, tal pergunta pode eclipsar o caminho multidirecional da resposta, a forma tradicional de inquirir, pressupõe uma única e possível resposta. Ao invés de uma unidade fixa e facilmente mensurável, Sullivan oferece em sua proposta epistêmica, um “eu aberto”, com diversas manifestações existenciais possíveis, sua teoria sublinha o aspecto plural e inacabado da pessoa humana.

No contato com o outro, somos construídos e, cooperamos na construção dos outros; o ser humano é um produto das interações sociais, como Adler, para Sullivan, somos essencialmente animais sociais.

As diversas e constantes experiências interpessoais do indivíduo, são tão significantes que, alteram gradativamente o funcionamento puramente fisiológico, mesmo a base orgânica do sujeito é transformada em “organismo social”; a respiração, a digestão, a eliminação, a circulação, entre outras funções básicas do organismo, são levadas a se adaptarem coercitivamente aos modos socializados de funcionamento.

 

            A Empatia no Processo de Aculturação

Para Sullivan todas as metas do comportamento humano se dirigem para duas principais necessidades básicas da existência pessoal: a busca constante de satisfação e a busca cada vez maior por segurança.

A primeira busca tem haver principalmente com as necessidades biológicas do ser, já a segunda, está mais relacionada com sua segunda natureza cultural; Sullivan reconhece o entrosamento constante dessas duas demandas.

O homem busca, conscientemente e inconscientemente, a vida inteira a segurança. Culturalmente a ideia de segurança quase sempre está associada a um forte “sentimento de pertença”, por isso, a segurança egóica é em certo aspecto um sinônimo de ser aceito e de participar de “algo maior”.

Sullivan fala de uma montagem empática do nosso eu, mesmo sem estar cônscio de sua existência pessoal, a criança é desde seu nascimento modelada por pessoas próximas, algumas dessas pessoas são extremamente significantes para sua existência pessoal, particularmente por meio da “função mãe”, são comunicadas muitas das regras e ditames sociais que o infante terá que seguir.

Esse contato empático primitivo é muito importante para a montagem da estrutura pessoal, a ansiedade, a ira, a depressão, entre outras coisas sentidas silenciosamente pelo bebê, lhe trazem uma certa intranqüilidade, essa modelagem negativa indireta, pode trazer dificuldades sérias para a criança afetada.

A doutrinação do ser em formação, portanto, acontece empaticamente de forma indireta ou direta, ao comentar as teorias de Sullivan, o filósofo e escritor Patrick Mullah, escreveu o seguinte sobre o processo empático:

 

Em virtude da empatia, muito antes que o infante possa compreender o que está acontecendo, ele já se dá conta de algo nas atitudes das pessoas significantes que o cercam. Mais tarde, ensinam-lhe deliberadamente o que está certo e errado, o “bom” e o “mau”. Dessa maneira, os impulsos, as solicitações biológicas do infante, são socialmente “condicionados”, isto é, modelados, tanto como forma de expressão como de realização, segundo padrões culturalmente aprovados (Mullahy, 1969, p.305).

 

O fenômeno humano da “empatia” é uma abertura para modelagem social, sempre que a criança faz algo aprovado culturalmente, ela terá uma experiência de bem-estar, já a desaprovação, ao contrário, levará o infante a uma sensação de insegurança e de forte ansiedade. Sua consciência em formação, será levada coercitivamente a uma adaptação com a consciência social vigente, os agentes culturais primários sem estarem cônscios plenamente de seu papel de “ajustadores sociais”, educam empaticamente o neófito.

A evolução do eu dentro da visão de Sullivan, corresponde por conseqüência, a uma estratificação do senso discriminativo social, ao se desenvolver, a criança será ensinada a todo o momento a concentrar sua atenção na prática dos atos que suscitam a aprovação ou desaprovação, sua capacidade de formar juízos de valores é fruto dessa interação com os agentes culturais.

Como Sullivan resiste em usar o termo “inconsciente”, ele prefere dizer que os aspectos que suscitam “reprovação”, são “dissociados” do campo mental consciente, normalmente os elementos dissociados não são reconhecidos pela pessoa que os exclui. Os componentes ideacionais dissociados não são facilmente incorporados, como Freud, Sullivan diz que a ajuda terapêutica serve para tornar o paciente cônscio de seus elementos rejeitados.

Visto que a pessoa humana é fruto da cultura, toda as tentativas para mudar crenças geram ansiedade, o psicanalista como uma pessoa “significativa” pode influenciar na ressignificação do auto-sistema do paciente, porém, como o homem é preenchido pela cultura gerada na interações humanas, ao abandonar uma crença, somos levados a substituí-la por uma outra.

 

           Personificações

É chamado de personificação a imagem que criamos de nós mesmos ou dos outros. Para Sullivan a personificação não se refere conceitualmente a uma simples “imagem”, ela é um complexo de sentimentos, atitudes, idéias e sensações que captamos em diversas experiências interpessoais.

Quando uma criança é bem cuidada pela mãe, ela acaba por criar uma personificação positiva, o que faz com que a criança sinta um sentimento de bem-estar. Sem que percebamos, qualquer relação interpessoal que nos traz satisfação, gera uma personificação positiva do agente da satisfação.

No pólo oposto ao descrito, quando uma mãe odiosa, ansiosa, desinteressada ou super protetora, tem contato com uma criança, a mesma cria uma personificação da mãe má, os pequenos detalhes indesejáveis sentidos pelo infante, criam personificações complexas, sua ansiedade, pode ser o alimento de diversas fantasias terríveis; no fundo, quando o senso de segurança é abalado, haverá sempre o aumento do nível da ansiedade de desamparo.

Tanto as personificações boas, como também as más, podem gerar o que Sullivan chamou de “distorção paratática” (Thompson, 1969, p. 194)

Normalmente a imagens que levamos conosco, em nosso mundo interno, não correspondem a uma descrição precisa das pessoas que nos cercam, formamos tais imagens a partir de intenções não muito claras a nós mesmos. Ao sofrermos o aumento do nível de ansiedade, podemos produzir falsas imagens e, assim,  projetamos tais produtos nas pessoas, ora personificando “anjos”, ora personificando “demônios”.

Esse conceito de distorção paratática de Sullivan, é muito parecido ao conceito freudiano de transferência.

 

            A Linguagem e o Eu

Não poderíamos deixar de destacar uma das maiores contribuições de Sullivan à psicanálise moderna: as relações sutis entre o eu e a linguagem.

Porém, para que possamos entender bem aquilo que Sullivan quis dizer, quando se referiu a linguagem como um fenômeno essencial na formação humana, é necessário entendermos minimamente esse crucial fenômeno.

A linguagem pode ser definida como um sistema de signos ou sinais, usualmente utilizada para indicar coisas, ela é vital para a comunicação humana, nosso mundo afetivo interno, bem como, idéias e valores, podem ser transmitidos por tal via formal.

Quando nos referimos à linguagem como um “sistema”, estamos dizendo que ela é uma totalidade estruturada, sendo que, tal estrutura tem seus próprios princípios e leis de regência específicas.

Em linhas gerais, a linguagem como síntese, abarca quatro funções primárias em sua estrutura: indicativa, comunicativa, expressiva e conotativa.

Podemos dizer que a linguagem é vital no contato interpessoal, afinal, a linguagem é um instrumento do pensamento; é por meio dela que abstraímos o concreto e, criamos nosso universo simbólico, nossos variados conceitos são categorias somente possíveis de serem criadas a partir da linguagem.

Quando a criança é inserida no sistema lingüístico, Sullivan diz que se inicia um importante fenômeno para seu ajustamento cultural, ele chamou esse fenômeno de “autística” (Mullahy, 1969, p. 312)

Com esse estranho termo, Sullivan explicita conceitualmente, que à medida que o “infante” progride na assimilação lingüística e formal, uma espécie de alienação se processa, ele se distancia da “coisa em si” e, aprende a pensar não a partir do sensível, mas sim, a partir do “consenso”.

Por isso, conhecer o mundo é na verdade conhecer uma maneira específica de conhecer. Nosso conhecimento não representa a coisa em si, representa apenas os elementos estruturados pelo nosso arbitrário saber.

Podemos dizer que a autística é um aprimoramento na atividade simbólica da criança, pela educação, ela lentamente é levada a prender-se aos padrões de relação da linguagem, ela só será reconhecida à medida que se curva às regras gramaticais impostas pela sociedade.

Inicialmente por causa de sua pouca assimilação cultural, as atividades simbólicas da criança são altamente pessoais, quanto mais a criança é aculturada, mais ela se conforma com a “realidade dos adultos”, esse ajustamento é normalmente premiado, enquanto a falta de ajustamento, quase sempre, traz um castigo.

Sobre esse ajustamento, o já citado filósofo Patrick Mullahy, comenta o seguinte sobre a visão interpessoal de Sullivan:

 

A criança aprende gradualmente o significado “consensualmente validado” da linguagem – no mais amplo sentido da palavra. Tais significados foram adquiridos por meio de atividades de grupo, atividades interpessoais e experiência social. A atividade simbólica, consensualmente validada envolve um apelo a princípios que foram aceitos como verdadeiros pelo ouvinte. E quando isso ocorre, o jovem adquiriu ou aprendeu o modo sintático de experiência (Mullahy, 1969, p314).

 

A experiência linguística é vivenciada pela criança como uma experiência de “aceitação”. O modo sintático que o comentarista cita no texto, se refere a um nível de apreensão mental, descrito por Sullivan, onde a criança já consegue elaborar sínteses, sua capacidade de abstração já o torna capaz de entender e transmitir certos conceitos e valores sociais.

Portanto, a razão é um forte instrumento usado para diminuir e controlar a ansiedade, porém, nem sempre tal recurso cultural tem efeito. Sullivan teorizou que sempre que a ansiedade é muito forte, há uma regressão ao modo paratático de experiência, sendo esse modo, uma forma anterior ao modo sintático. Ao dar-se essa regressão, de acordo com o pensamento de Sullivan, esse fenômeno, levaria a desestruturação do plano lógico do sujeito. Esse instigante conceito, lembra muito a teoria do “terror-sem-nome” de Bion, ou ainda, a “regressão as fantasia de corpo despedaçado” de Lacan.

Certamente, muito mais coisas poderiam ser ditas sobre as valiosas teorias de Sullivan, porém, isso não é possível nesse trabalho panorâmico. Em seguida deslizaremos nossa atenção sobre uma outra importante figura do culturalismo: Karen Horney.

 

           Uma Mulher Muito Corajosa

Horney foi uma mulher de muitas qualidades. Viveu numa época onde o falocentrismo psicanalítico predominava. Por isso, sua corajosa postura intelectual questionadora, foi vital para o desenvolvimento da psicanálise.

O próprio Freud como criador da psicanálise, defendia uma visão estritamente falocêntrica. Em seu “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, definindo a natureza essencial de sua “libido sexual”, escreveu:

 

A atitude auto-erótica das zonas erógenas é idêntica em ambos os sexos, e essa conformidade suprime na infância a possibilidade de uma diferenciação sexual como a que se estabelece depois da puberdade. Com respeito às manifestações auto-eróticas e masturbatórias da sexualidade, poder-se-ia formular a tese de que a sexualidade das meninas tem um caráter inteiramente masculino. A rigor, se soubéssemos dar aos conceitos de “masculino’ e “feminino” um conteúdo mais preciso, seria possível defender a alegação de que a libido é, regular e normativamente, de natureza masculina, quer ocorra no homem ou na mulher, e abstraindo seu objeto, seja este homem ou mulher (Freud, 2002, p.96).

 

Freud acreditava que a libido sexual era uma energia masculina, isso fazia da própria sexualidade, um desdobramento dessa potência masculina. Assim, a masculinidade era natural, já a feminilidade era uma decepcionante descoberta.

De acordo com a teoria freudiana, tanto o menino, como a menina, passavam pela angústia de castração; no entanto, o complexo de castração era positivo no caso do menino, pois, ao sofrer a angústia da castração ele superava o complexo de Édipo. Bem ao contrário disso, na menina a angústia de castração gerava um sentimento de “incompletude”.  A inveja do pênis era o produto final da castração no caso da menina, ao invés de se livrar do Édipo, ela ficava presa a uma promessa inconsciente que a fixava no Édipo.

Em outras palavras, no caso da mulher, a feminilidade era uma descoberta “negativa”, a ideia de castração era ligada ao seu pênis incompleto (clitóris). Na teoria clássica a menina inconformada com sua falta de sorte, culpava a mãe por ter vindo ao mundo tão mal equipada, por fim, se identificava com a figura paterna e, se recolhia em sua feminilidade, com isso ficava a vida inteira aguardando um “pênis”. Com a demora da concretização da promessa peniana, deslocava com o tempo seu desejo para um outro objeto substituto: um bebê.

Psicanalistas célebres aceitaram por muito tempo essa descrição freudiana, como a única via para entender a psique feminina, e, psicanalistas como a polonesa Helene Deutsch, além de aceitar tais pressupostos, ampliaram tal visão machista. Essa influente psicanalista baseada na idéia da passividade natural da mulher, concluiu que tal passividade era um sinônimo de um “masoquismo” estrutural, por isso, as dores do parto eram para a mulher, um verdadeiro orgasmo (Mijolla, 2002).

Também, o psicanalista húngaro Sandor Ferenczi, ratificou a opinião de Deutsch, dando a idéia que o parto como concretização da promessa edipiana, era um momento especial de puro prazer orgástico (Sayers, 1992).

Horney corajosamente questionou a veracidade dessas idéias, para ela essas crenças eram meras fábulas criadas pelos homens. Evidentemente, não era a originalidade a marca maior dessa postura questionadora, afinal, Adler já havia levantado suspeitas sobre a constituição inata da “inveja do pênis”, o que talvez Horney tenha feito de melhor, foi a sistematização de uma teoria contrária.

Inicialmente Horney se apoiou em um pressuposto biológico para provar que, o que designou de “feminilidade inata”, não dependia do complexo de Édipo.

Horney afirmou que a ligação da menina com o seu pai no Édipo era um desenvolvimento normal e diretamente ligado à feminilidade inata (Ceccarelli, 1990).

Ainda nessa sua primeira fase trabalhando com o paradigma biológico, Horney não conseguiu desmentir algumas fantasias que pareciam apontar para a existência de algo próximo a inveja do pênis, o que fez por volta de 1926, foi apenas contra argumentar de uma forma um tanto desesperada, dizendo que; se a inveja do pênis era um fato psíquico, também não faltavam fantasias que apontavam para uma “inveja masculina” do ventre” (Sayers, 1992).

Já numa segunda fase mais madura, a partir de 1930, seu direcionamento teórico mudou sensivelmente. Gradativamente sua visão biologizante foi sendo enfraquecida, Horney reformulou suas teses iniciais e adotou o paradigma culturalista para entender alguns fatos psíquicos.

Nesse momento, sua defesa se aproximou ainda mais das teses defendidas anteriormente por Alfred Adler, ela começou a conceber a inveja do pênis, como uma inveja fálica referente ao lugar privilegiado que o homem assumia no sistema patriarcal.

Em seu famoso livro “Novos Rumos na Psicanálise”, Horney apresenta suas reformulações teóricas nos seguintes termos:

 

Tem sido dito que as mulheres adultas podem expressar, explicitamente, ou representando-se a si própria em sonhos com um pênis ou com um símbolo fálico, certo desejo de serem homens. Podem também demonstrar desprezo para com as mulheres e atribuir certos sentimentos de inferioridade que possuem ao fato de serem mulheres, ou, ainda, tendências de castração podem-se manifestar ou se expressar em sonhos, clara ou disfarçadamente. Estes últimos fatos, ainda que a sua ocorrência esteja fora de dúvida, não são tão freqüentes como certos trabalhos analíticos sugerem. Além disso, só ocorrem com mulheres neuróticas e comportam uma interpretação diferente (…) aparecem aqui os fatores culturais. O desejo de ser um homem, como assinalou Alfred Adler, pode ser a expressão de um desejo de possuir aquelas qualidades ou privilégios que, na nossa cultura, são considerados como masculino: força, coragem, independência, sucesso, liberdade sexual e direito de escolher um companheiro (Horney, 1966, pp.90-91).

 

Após concordar que algumas mulheres de fato demonstram uma inveja fálica, Horney diz que tal ocorrência é um sintoma neurótico, não um traço comum da constituição feminina.

Depois em sua argumentação evoca Adler, e junto com este, diz que a inveja do pênis é na verdade uma inveja construída culturalmente a partir da discriminação que a mulher sofre em nossa sociedade. Querer ser um homem, é uma forma simbólica de dizer que gostaria de ser valorizada por ser também humana. Porém, Horney não esgota sua contra argumentação nessa única possibilidade. Ampliando sua divergência ela continua:

 

É necessário levar em conta a possibilidade que o desejo humano de ser homem seja o disfarce assumido por uma ambição recalcada. Nas pessoas neuróticas, a ambição pode ser tão destrutiva a ponto de ficar impregnada de angústia e necessitar ser recalcada. Isso é verdade tanto para o homem quanto para a mulher, mas, como uma conseqüência da situação cultural, na mulher uma ambição destrutiva recalcada pode-se expressar por meio do símbolo, comparativamente inócuo, do desejo de ser homem (Horney, 1966, p. 91).

 

E, ainda sobre a idéia freudiana de um masoquismo estrutural na mulher, idéia essa, tão ardorosamente defendida por Helene Deutsch, Horney escreveu:

 

Muitas mulheres neuróticas têm idéias masoquistas a respeito do ato sexual. Acham que a mulher é uma vítima dos desejos animalescos do homem, que ela deve sacrificar a si mesma e que este sacrifício rebaixa-a. Podem mesmo engendrar fantasias a respeito de serem fisicamente ofendidas pela cópula. Algumas mulheres neuróticas desenvolvem fantasias de satisfação masoquista através do parto. O grande número de mães que assume o papel de mártires e que, continuamente, estão lembrando o quanto se sacrificam pelos seus filhos, pode certamente servir como prova de que a maternidade é capaz de oferecer na satisfação masoquista para as mulheres neuróticas. Há também moças neuróticas que fogem ao matrimônio porque imaginam que serão escravizadas e maltratadas pelo futuro marido, Por fim, as fantasias masoquistas a respeito da função sexual da mulher podem contribuir para rejeição do papel feminino e para a preferência pelo masculino (Horney, 1966, p 93).

 

Novamente Horney concorda com o fato de existirem mulheres que vinculem sua feminilidade com traços masoquistas, porém, ela diz que isso é uma manifestação neurótica, não uma tendência normal da constituição feminina, portanto, sua concordância é parcialmente, e, totalmente contrária à visão generalizante de Freud e Deutsch.

Para Horney, a ligação biológica entre os sexos opostos, é mediado por diversos anseios culturais inconscientes. O domínio patriarcal levou a mulher a uma supervalorização do amor, por muito tempo à única forma da mulher se realizar era sendo “mãe”, isso fez com que o sacrifício de sua individualidade fosse sentido muitas vezes como uma “ferida necessária”, a expressão plena desse fato é a máxima do senso comum que diz que: “… ser mãe, é padecer no paraíso”.

A alteração paradigmática introduzida por Horney em seu próprio pensamento, fez com que ela se aproximasse mais ainda de Adler, como esse grande teórico, ela foi levada a conceber a “meta masculina” como uma “ficção condutora”. Suas teorias ganharam cada vez mais leveza, ao mesmo tempo em que ficaram mais consistentes. Horney, com o tempo, descobriu que talvez o maior motivo de sustentação das neuroses, é a nossa tendência inconsciente de naturalizar aquilo que é cultural.

 

            As Bases Culturais das Neuroses

Ao questionar a razão biológica da inveja do pênis, Horney foi levada a questionar a legitimidade de toda teoria instintivista de Freud. Com o tempo, passou a duvidar particularmente das bases biológicas das chamadas neuroses, desse questionamento sistematizado, surgiu uma profunda e interessante teoria explicativa.

Em seu livro “A Personalidade Neurótica de Nosso Tempo”, Horney nos oferece em termos bem simplificados, como distinguir a maneira normal e a neurótica de reação, tal distinção é muito importante, até porque, para entendermos a base etiológica das diversas neuroses, é necessário antes caracterizar o chamado “tipo neurótico”. Ela começa sua distinção dizendo:

 

As condições de vida de toda cultura dão lugar a certos medos. Podem ser ocasionados por perigos externos (natureza, inimigos), pelas modalidades das relações sociais (incitamento à hostilidade devido ao recalque, injustiça, dependência forcada, frustrações), por oposição a tradições culturais (medos tradicional de demônios, de violação de tabus) independentemente de como se hajam originado. Um indivíduo pode ser mais ou menos sujeito a esses medos, porém, de modo geral , é licito presumir que eles atuem sobre todos os indivíduos que vivem numa dada cultura e a que ninguém pode escapar. O neurótico, contudo, não só participa dos medos comuns a todos os indivíduos de sua cultura, como também, por causa de circunstâncias de sua vida individual – que, todavia, estão mescladas com as circunstâncias gerais – tem medo que se afastam, quantitativa ou qualitativamente, dos peculiares aos padrões culturais (Horney, 1972, p. 14).

 

O medo mórbido e paralisante do neurótico é uma reação desproporcional em referência ao estímulo, seu medo é apenas atualizado no “real”, não é causado pelo mesmo. O indivíduo normal teme reativamente, porém, não teme compulsivamente, seu medo acaba onde começou.

Muito interessantemente, Horney destaca que nosso contato com a existência é fortemente mascarado pelo medo. Sentir medo, portanto, está intimamente ligado ao nosso ato racional discriminativo.

O medo neurótico, bem diferente dessa ativação discriminativa é irracional. Assim, o conteúdo de tal medo é sempre uma “mescla” de sentimentos, por isso, o senso discriminativo é praticamente anulado.

Uma pessoa normal, embora sofra os muitos medos culturais, potencializa sua coesão egóica em defesa de sua vida, sua capacidade interna é usada na superação das dificuldades existenciais.

O neurótico se perde em seu sofrimento, é muito comum o indivíduo neurotizado idealizar a “morte” como uma solução para os problemas da vida, na neurose sempre existe uma discrepância entre a potencialidade interna e as realizações do sujeito.

As defesas normais do ego visam elaborar uma nova maneira de se relacionar com a existência, são em si, o germe de um novo momento, de um novo contato com o real. O que chamamos de “defesas maníacas”, se prendem ao antigo, levam o neurótico novamente ao passado, infelizmente, ao invés, dessa viagem regressiva reorganizar a vivência presente do sofredor, só o leva a sofrer pela “segunda vez”, aquilo que sofreu no passado.

Frente a essas diferenças básicas, entre o normal e o anormal, Horney considera a neurose como uma forma mal sucedida de desenvolvimento, por isso, o neurótico evolui em seu quadro deletério, porém, não se desenvolve como ser humano.

A natureza compulsiva das tendências neuróticas, seriam uma reação maníaca impetrada contra a ansiedade inconsciente. Como Adler, Horney também acreditava que uma vivência afetiva insatisfatória na infância, tinha um grande peso na configuração da personalidade neurótica.

Falando sobre a gênese dessas tendências diversas no ser humano, ela escreveu:

 

Elas se formam bem cedo na vida, graças ao efeito combinado de certas influências do temperamento e do ambiente. O fato de uma criança tornar-se submissa ou rebelde, sob a pressão coercitiva dos pais, depende não só da natureza da coerção, mas igualmente de certas qualidades, como o seu grau de vitalidade e a sua relativa brandura ou resistência natural. (…) Em quaisquer condições,a criança será influenciada por seu ambiente: o que interessa é saber se esta influência tolhe ou favorece o crescimento. E o que prevalecerá vai depender sobretudo do tipo de relacionamento estabelecido entre a criança e seus pais ou outras pessoas que a rodeiam, inclusive outras crianças da família. Se a mentalidade no lar é de cordialidade, respeito e consideração mútuos, a criança poderá crescer sem obstáculos (Horney, 1984, pp. 35-36).

 

Como é visto no texto acima, diversos fatores influenciam na construção de uma personalidade, porém, todos esses fatores estão ligados ao relacionamento do ser com o seu ambiente. O culturalismo de Horney descarta “influências inatas”, o drama edipiano é relido como uma das ocorrências existenciais significativas, e não como um mito ontológico intrínseco ao ser.

Influenciada pela hipótese freudiana de um inconsciente filogenético, a escola inglesa, até mesmo chegou à fantástica teoria das “fantasias originárias”, formas filogenéticas que afetavam instintivamente a criança desde seu nascimento, Melanie Klein se refere a tal postulado teórico da seguinte forma:

 

As teorias sexuais formam a base da maioria das fixações sádicas e primitivas, Freud nos ensinou que a criança obtém um certo saber inconsciente, aparentemente de forma filogenética. Este inclui o conhecimento sobre a relação sexual entre os pais, o nascimento das crianças, etc.; contudo trata-se apenas de um saber vago e confuso (Klein, 1996, p. 204).

 

Se fiando na obscura e prematura teoria de um enigmático inconsciente filogenético, Klein defende uma exótica teoria sexual de cunho inatista, de acordo com seu pressuposto, algumas das deletérias afecções do psiquismo são causadas por esse “saber vago e confuso” que pré-existe na mente infantil. Honestamente dizendo, muito mais “vago e confuso” é essa concepção pansexualista, é evidente que essa crença pueril, foi sustentada por causa da idéia de que o complexo de Édipo é a base nuclear das neuroses, das perversões e psicoses, ou seja, os problemas existenciais, não são de fato existenciais, são verdadeiramente sexuais.

Essa visão reducionista foi fortemente questionada por Adler. Como já vimos no presente estudo, algumas propostas inovadoras de Adler foram retomadas pela escola revisionista americana e, acreditamos que o culturalismo tem o mérito de ter aprofundado tal discordância, ao mesmo tempo em que, foi capaz de oferecer uma organizada contra-teoria. É possível dizer que a partir da visão culturalista, uma base epistêmica pautada em um paradigma existencialista, foi proposto para substituir o velho paradigma anatomo-fisiológico do começo da psicanálise.

Nesse novo paradigma existencialista, todo e qualquer conhecimento do sujeito é construído empiricamente pela sua mundanidade. Para o indivíduo “ser”, necessariamente terá que “fazer”, sua ação mundana dialética produz o conhecimento, ao mesmo tempo em que o conhecimento produzido, também, produz o produtor.

Não existe um conhecimento sem intencionalidade, tanto em nível inconsciente, como, em nível consciente, todo saber é fruto da cultura. Os diversos “conhecimentos” culturais visam sempre um objetivo maior: adequar as ocorrências particulares e sem sentido, na estrutura de uma lei ou ordem teleológica ideal.

Tanto em Horney como nos demais culturalistas, não é um complexo de Édipo de teor sexual, que, serve como base para o desconforto neurótico, são as vivências desfavoráveis no sentido existencial que, infelizmente, farão uma criança se defender de maneira maníaca.

Falando das razões dos traços neuróticos numa criança, Horney disse:

 

Eles representam um modo de vida imposto por circunstâncias desfavoráveis. A criança sente-se forçada a desenvolvê-los a fim de sobreviver a sua segurança, seus medos e sua solidão; todavia, eles lhe dão uma noção inconsciente de que tem de aferrar-se a todo custo ao caminho traçado, pois do contrário sucumbirá ante os perigos que a ameaçam (Horney, 1984, p. 37).

 

Os traços neuróticos não são “herdados”, são construídos. Os mesmos equivalem existencialmente a uma leitura empobrecida do mundo, são sistemas orientacionais. Mesmo os sintomas neuróticos mais esdrúxulos, são formas teleológicas que seguem inconscientemente uma intencionalidade defensiva, a neurose é a cultura da “des-cultura”, é o grito desesperado por uma fusão natural perdida em algum momento do passado.

Embora, em sentido comparativo, as críticas sociais feitas por Horney, fossem normalmente mais brandas do que as produzidas por Fromm, ela não deixou de denunciar de forma muito contundente que a verdadeira causa do desconforto neurótico, reside na incapacidade parental de reconhecer e atender às necessidades da criança. Ela não deixou de demonstrar na maioria de seus livros que, essa deficiência afetiva, gerava diversas formas reativas, como a permissividade educacional e a superproteção.

Uma criança criada em um ambiente de desequilíbrio emocional, tenderá sempre a criar uma auto-imagem discrepante, pode se ver como um verdadeiro “deus”, ou no pólo contrário desse delírio, se sentir como um reles “demônio”. Horney acreditava que a única forma de curar uma neurose era modificando as bases sociais que a geravam. Sobre essa condição de formação ambiental ela escreveu:

 

O conflito entre o indivíduo e o ambiente não é tão inevitável quanto Freud supunha. E, quando aparecem tais conflitos, as suas causas não residem nos instintos do indivíduo, mas no fato de o ambiente inspirar temores e gerar hostilidade. As tendências neuróticas que, em consequência desses conflitos, os indivíduos desenvolvem, às vezes, proporcionam-lhes um modo de enfrentar o ambiente e, em outros, favorecem o desenvolvimento de conflitos. Portanto na minha opinião, os conflitos  com o mundo exterior não constituem, apenas, as bases das neuroses; eles constituem, isso sim, uma parte essencial das dificuldades neuróticas (Horney, 1966, p. 156).

 

O que é citado nesse último fragmento de Horney é algo muito importante para a psicanálise moderna, afinal, o psicanalista bem atualizado deve deixar de olhar apenas para a corporeidade pulsional de seus pacientes e, em sentido mais amplo, prestar a detida atenção na dinâmica familiar, em seus relacionamentos profissionais, na sua vivência amorosa, em suas crenças condutoras, enfim, deve ter uma visão holística sobre o universo relacional do consulente.

Diferente de uma teoria fechada e determinista, Horney é bastante otimista, semelhante a Adler e Sullivan, ela encara a personalidade como o resultado de diversas relações intrapsíquicas e extrapsíquicas, sendo assim, ao mudarmos nossa maneira de atuar existencialmente, podemos alterar grandemente, tanto a nossa história pessoal, bem como, influenciar positivamente outras histórias que se formam em nosso entorno.

Prof. Marcos Oliveira

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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THOMPSON, Clara. Evolução da Psicanálise. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1969.

QUEM E O QUE É O HOMEM?

Autor: Prof. Me. Marcos de Oliveira

 

A fim de compreender o que é o homem, devemos antes compreender o real status conferido ao mesmo pela psicanálise. Neste sentido, a psicanálise parte de um antropocentrismo epistêmico, isso porque, em sua concepção, ao tentarmos explicar e entender o homem, em seus variados desdobramentos existenciais, adentramos o questionamento ontológico de todas as outras coisas existentes. Acreditamos que só com o surgimento do homem, bem como, pela montagem de sua organização mental, nos deparamos com o verdadeiro elemento significador daquilo que comumente chamamos de real. Em nossa visão personalista todo e qualquer sentido para existência, só pode emergir da excepcionalidade da vivência subjetiva do homem, ou dito de outra maneira, é nessa singularidade da pessoa humana que sempre encontraremos um sentido para tudo que existe.

Dentro da sua estruturação psíquica o homem expandiu-se para todos os lados; o que inicialmente era só imanência, tornou-se transcendência; a base humana foi além da manifestação fenomenológica passiva, o homem superou todas as coisas e, no seio desta superação, deixou de ser coisa para assumir a dimensão maior e singular de pessoa.

É lógico que sabemos que o homem foi e certamente continuará sendo explicado de diversas formas e a partir de diversas perspectivas, mesmo a psicanálise como a ciência do profundo, não tem como pretensão possuir uma hermenêutica capaz de compreender o ser em sua essência. Ninguém mais do que o psicanalista, sabe que explicar não é sinônimo de compreender aquilo que se explica em suas últimas e mais profundas possibilidades.

O homem é filho do mistério, pois ao ser introduzido no mundo como indivíduo já traz intrinsecamente a dúvida e a incerteza como marca maior de sua evolução, porém, como gênero o homem deixa de ser filho para assumir o papel de pai de todos os mistérios afinal, só é possível e pertinente ao animal humano o questionamento existencial.

A pessoa humana é gerada a partir de duas partes aparentemente excludentes: a soma de todas as verdades e certezas de seus inumeráveis antepassados, bem como, se construiu também pelos erros e incertezas de todos aqueles que pisaram antes em seu incógnito planeta. Por esse motivo, sua natureza essencial fundamenta-se em uma dualidade permanente, ele é construído como humano pela dança dos opostos. Ontologicamente a concomitância das oposições e a soma geral de suas muitas manifestações, criam condições para sua mundanidade[1].

Portanto, ao nos referirmos ao homem, falamos sempre de uma totalidade autotranscendente capaz de um senso agudo de anterioridade pessoal; ao mesmo tempo sua identidade não se sustenta só em uma visão regressiva de si mesmo, pois prospectivamente o homem conseguiu se projetar nas paisagens daquilo que ainda não é, porém, frente a suas múltiplas possibilidades pode vir-a-ser.

Pode-se afirmar, sem dúvida nenhuma, que a gangorra de pensamentos regressivos e progressivos é movimentada pela liberdade que o ser tem de pensar a sua própria vida, e é, exatamente pela via dessa reflexividade, que o homem passa a ser o criador de seu próprio destino, tendo a capacidade de fazer ou não determinada coisa, de cumprir ou não determinada ação, embora independente de suas escolhas, em sua natureza interna já subsistem todas as condições requeridas para diversas formas de ação.

Portanto, como bem ressaltou Sartre (2001), o Ser pela sua expansão consciencial age dentro de umaintencionalidade, sempre que escolhe fazer algo, faz por si mesmo ou por alguém, seus movimentos no mundo sãoteleológicos, ou seja, todo e qualquer movimento do ser se dirige a um objetivo.

Alfred Adler foi o primeiro psicanalista a estudar profundamente esta teleologia da vida e, na sua obra A Ciência da Natureza Humana, escreveu o seguinte sobre tal qualidade humana: “não podemos, portanto, imaginar a alma humana como um todo estático; temos de imaginá-la um complexo de forças dinâmicas… esta teleologia, este lutar por um objetivo, é inato no conceito da adaptação” (Adler, 1957, p.31).

Para Adler, adaptar-se humanamente a vida é ter um compromisso com a mesma, existir está ligado em sua teoria a nossa objetivação pessoal enquanto agimos como seres no mundo.

Um outro desdobramento da teleologia da vivência humana é a perspectividade, fenômeno muito interessante que merece a nossa atenção.

Pelo termo perspectividade, devemos entender, que no contato que o ser tem com os diversos objetos mundanos, existe nessa operação de contato uma incapacidade estrutural de apreender todo o objeto de uma só vez, o objeto por estar além daquilo que o ser é, possui inúmeros aspectos desconhecidos, forçando sempre o observador a um juízo parcial em referência ao objeto. Nesse fenômeno humano de análise objetal o sujeito depende grandemente de sua organização subjetiva, fazendo automaticamente uma releitura do concreto a partir de sua perspectiva particular.

O ser que em sua finitude e contingência tenta entender os diversos níveis de grandezas que o cercam, só pode executar o exame daquilo que é maior que seu eu, por meio de um processo de adequação e reducionismo do real, fazendo isso ele cria uma espécie de mapeamento psíquico interno para controlar conceitualmente o imenso território externo ao seu mundo intrapsíquico.

Nasce, dessa tentativa, essencialmente humana de enclausuramento do real, uma cópia representacional do mundo externo e, a estratificação de vários fragmentos representacionais, acaba por criar uma imagem sistêmica interna que chamamos de cosmovisão.

Embora existam muitos pontos em comum entre os membros do gênero humano, cada comosvisão é essencialmente particularizada pela sensibilidade e acuidade daquele que a organiza em plano individual.

Cada pessoa sente e organiza a realidade de uma forma extremamente arbitrária, suas crenças e modelos representacionais são formados a partir de anseios particulares, e, a principal matéria-prima de tal modelagem reativa é sempre um extrato comum e convencional, oriundo da ação conjuntiva da aculturação e socialização exercida sobre o indivíduo. Assim, em termos gerais, a cosmovisão pessoal será montada por sensações, experiências, idéias e outros fatores estruturais que se somarão criando uma cadeia coerente de interpretação do mundo sensível.

É lógico que até o homem ter alcançado o status de animal racional (sendo só a partir daí, possível a organização lógica do seu mundo psíquico), ele teve que percorrer um longo caminho evolutivo, caminho este que passaremos a examinar a partir de agora.

O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA

Para que possamos prosseguir em nossa análise estrutural do ser humano, devemos somar ao nosso estudo algumas importantes contribuições da Sociologia e da Antropologia. Alinhavando tais valiosas teorizações ao conhecimento psicanalítico, tentaremos por essa junção desenvolver uma espécie de Antropologia Psicanalítica.

Analisarmos o homem em sua mais primitiva fase intelectual é talvez, retroceder a uma esfera de pré-nominação humana, neste estado natural de pré-intelectualidade o homem só era homem em potência, pois em ato era meramente mais um animal irracional.

Usando o conceito de Hegel, nessa fase o animal que se tornaria humano era um elemento natural em-si, sua consciência era restrita a percepção sensível, não ia além das desconexas gravações imagéticas de sua memória. Em seu escopo mais primitivo o homem não conseguia distinguir entre o animado e o inanimado, não existiam projeções antropomórficas nesse período, a estruturação mental achava-se em seu estágio pré-anímico.

A idéia de uma realidade externa, e de uma divisão dualística entre coisas animadas e coisas inanimadas não são dados inatos; na verdade hoje sabemos que tal percepção dual é fruto de um longo trajeto cultural e afigura-se como uma das primeiras conquistas do Homo sapiens.

Interessantemente, o homem começou a ter consciência da vida quando percebeu os limites da mesma, com esse movimento evolutivo ele ganhou uma nova e vital percepção do mundo, nasceu uma consciência externa capaz de inserir em seu bojo a noção fenomenológica da morte.

Pensar sobre a morte lhe trouxe insegurança, furtou-lhe o manto de onipotência, porém, tal percepção o amarrou definitivamente ao real.

Os dados mais recentes da Antropologia e da Arqueologia apontam para o fato de que na idade da pedra lascada (Paleolítico médio que se estende de 100.000 a 35.000 a.C) tem início os primeiros enterros sistemáticos e, com os neandertalenses, uma espécie de culto aos antepassados começa a desenvolver-se.²

Evidentemente, tais descobertas demonstram quão arcaicas são as preocupações existenciais de nossos antepassados primitivos. Foi também estabelecido que no Paleolítico superior, que vai de 35.000 a 10.000 a.C, o Homo sapiens, que sucedeu o Homo de Neandertal, começa a criar os primeiros cemitérios. ³

No entanto, a preocupação do Homo sapiens não ficou circunscrita ao fenômeno da morte, pois as coisas do seu dia-a-dia também lhe reclamavam atenção.

Como essa sociedade em desenvolvimento era essencialmente sustentada pela caça, as preocupações do cotidiano foram registradas em diversas cavernas; dentro deste período temos a feitura das notórias pinturas Rupestres.

A etnologia encara toda produção da arte paleolítica, como prova de uma mutação intelectual que marca um salto quantitativo e estabelece um avanço singular da mente do Homo sapiens em relação aos seus predecessores.

Para a Psicanálise a habilidade dos artistas rupestres, indica uma maior capacidade de simbolização, diferente do povo de Neandertal, que, com os seus ritos mortuários descobriram um sentido arcaico de identidade ligado ao seu corpo, o Homo sapiens vai além da noção primitiva do ego corporal e projeta-se no próprio ambiente por meio da abstração artística.

Com esse avanço intelectual o homem sai do campo das imagens estáticas e desarticuladas, para um outro onde as imagens passam a ter uma devida articulação entre si, produzindo uma linguagem embrionária das cavernas.

Hoje sabemos que a enigmática arte paleolítica não tinha uma missão decorativa, tais gravuras primitivas cumpriam na verdade uma função mágico-religiosa; como os pintores das cavernas viviam num mundo inseguro e perigoso, e a sua sociedade vivia exclusivamente da caça, as pinturas eram simbolicamente um instrumento a mais para se defenderem e controlarem o mundo fora das cavernas.

Temos nessa expressão cultural arcaica um esboço de religiosidade, as cavernas eram lugares sagrados, na realidade cumpriam a missão de cavernas-santuários, onde por meio de uma magia do pensamento, assegurava-se o sucesso da caça e o controle mágico à distância no imprevisível e inóspito ambiente que o homem primitivo estava inserido.

A criação subjetiva interna de fantasias compensatórias de proteção eram essenciais à vida do homem primitivo; afinal ele possuía apenas frágeis armas de pedra para se proteger contra todos os perigos que o cercava.

Em muitas gravuras, pode-se perceber diversos furos produzidos por estocadas de lanças, especialistas acreditam que tais marcas foram produzidas num clima de danças rituais, evidentemente a objetivação de tais cerimônias era a antecipação eidética do que aconteceria na caça verdadeira (Modell, 1973).

É muito oportuno dizer que para nossas mentes modernas, a verdadeira caça acontecia fora da caverna e após o ritual, no entanto, para os nossos primitivos antepassados não era assim que as coisas aconteciam; a verdadeira caça acontecia e era determinada durante o ritual, o símbolo era o real e, o que acontecia fora da gruta santuário era apenas um desdobramento secundário do ritual mágico.

Podemos falar de uma magia projetiva, onde não existia uma clara distinção entre símbolo e objeto, o domínio sobre o animal simbólico equivalia prospectivamente ao domínio exercido sobre o animal real.

O principal mecanismo psíquico envolvido nesse pensamento mágico é a projeção; é como se o homem primitivo quisesse curvar o mundo natural, bem como, moldá-lo pelo seu desejo.

Em uma outra gravura na caverna de Lestrois Frères, podemos encontrar também um outro interessante desdobramento desta arcaica forma de pensar.

Na gruta encontra-se uma famosa pintura denominada pelos estudiosos de O Feiticeiro. Temos ali, a figura de um homem com os órgãos genitais humanos expostos e, em sua cabeça dois chifres enormes de veado, o mesmo é representado com corpo flexionado para frente e as pernas estão dobradas indicando provavelmente um movimento de dança ritualística (Modell,1973). Na frente desse dançarino sagrado, existem diversos desenhos de animais; é como se sua dança divina gerasse esses inúmeros seres, seu ato era o ato de uma divindade que tinha o poder de dar vida.

Ao mesmo tempo em que ele criava todos os animais ele também era um animal sagrado, o homem representado pela gravura do feiticeiro trazia vestígios de tinta que enfeitavam sua testa e nariz, sugerindo uma máscara sagrada de animal. O uso de máscaras sagradas em rituais ainda é muito comum nas chamadas religiões nativas, normalmente os participantes que usam as máscaras cerimoniais pensam transferir para si todas as qualidades do animal representado, temos aí, algo que podemos chamar de magia incorporativa.

Diferente da magia projetiva, que tem seu suporte psíquico na projeção, a magia incorporativa tem sua base no mecanismo psíquico de introjeção.

Na fantasia de incorporação, aquele que representa o objeto transforma-se no próprio objeto, o desejo mágico de fusão é sentido superlativamente pelos participantes como uma união mística, no ambiente mágico dois corpos podem ocupar o mesmo espaço.

Além da fantasia primitiva de incorporação, uma outra prática mágica é bem nítida no exame da arte rupestre, trata-se de uma forte ilusão criadora que denominaremos de magia de reparação.

O Psicanalista Arnold H. Modell (1973), em seu estudo intitulado “Amor objetal e realidade”, nominou tal ilusão de “magia reprodutiva”, nós entretanto preferimos chamar essa atitude arcaica de magia de reparação, pois, embora o termo magia reprodutiva encaixe-se bem no contexto do estudo das pinturas rupestres, ele traz embutido sérias limitações no que se refere ao uso por psicanalistas.

É importante que se diga que o termo magia reprodutiva foi criado inicialmente por dois especialistas em antropologia: Breuil e Obermaier. Os especialistas em questão, perceberam que quando são representados dois animais em uma cena, os mesmos são invariavelmente macho e fêmea, também, em muitas cavernas a cópula entre os animais é o tema preferido do artista rupestre e, é muito freqüente a representação de fêmeas em estado de gravidez. Foi encontrado uma estátua que se tornou célebre entre os arqueólogos, que estampa bisões no ato da cópula, tal ícone de argila demonstra a importância que o ato reprodutivo ocupava na mente de nossos primitivos artistas.

Porém, é importante ressaltarmos que não era o ato sexual em si que era valorizado pelos primitivos, mais sim o poder mágico que os selvagens creditavam ao comportamento sexual. Como a gravidez era uma consequência do ato sexual a cópula era encarada como primeira fase de um processo mágico de recriação. No livro Totem e Tabu, Freud fala da relação ambígua que o homem primitivo tinha com o mundo externo (Freud, 1999).

A relação dual de amor e ódio era à base dos atos externos dos nossos primitivos ancestrais, esse paradoxo intrapsíquico criava uma espécie de oscilação constante, os animais destruídos durante a caça eram recriados magicamente durante os rituais pré-religiosos.

Nessa altura a percepção de perda e de separação já era mais nítida na espécie Sapiens e, os impulsos agressivos começavam a serem limitados e controlados por uma segunda corrente interna de impulsos: os sentimentos amorosos.

Eros começa sua dança cósmica com Thanatos; se o impulso agressivo era a base da superação hominal realizada pelo animal humano, o impulso amoroso era à base de ligação e manutenção necessária para que o homem não se distanciasse demais de suas raízes naturais.

Os dois impulsos serviam a um mesmo instinto primitivo de autopreservação, porém, estruturaram na natureza humana uma bipolaridade constante de fluxo ativo e passivo, gangorra essa que cria permanentemente a dualidade: destruição-reparação. Com o despertar da consciência o homem passou a inserir-se ao princípio da realidade como indivíduo, porém como acrescentou Freud, tal fixação primitiva à realidade veio acompanhada por uma quantidade maior de insegurança interna.

Pela via do pensamento mágico, os primitivos tentavam apaziguar seus muitos medos e receios, as práticas pré-religiosas nativas serviram instrumentalmente como uma medida onipotente de controle sobre os diversos perigos reais.

A ânsia interna de domínio é um desdobramento do impulso agressivo, e na magia a crença no controle a distância dos objetos desejados, tem como base tal ânsia inconsciente. No entanto, como já dito anteriormente, uma outra classe de impulsos se estrutura no homem. Os impulsos amorosos criaram uma ligação afetiva entre o homem e o mundo externo, foi exatamente essa qualidade afetiva primitiva que deu origem ao sentimento de culpa.

Interessantemente, os dados e descobertas, tanto da arqueologia como da antropologia, comprovam indiretamente a teoria psicanalítica de Melanie Klein em referência ao sentimento individual de culpa.

Para a Sra. Klein, a ansiedade primitiva é causada pelos fortes impulsos agressivos do bebê, e em sua teoria, os afetos destrutivos arcaicos são controlados quando a ansiedade amadurece e transforma-se em culpa, tal controle homeostático acontece na posição depressiva.

Segundo as profundas teorizações da Sra. Klein, existe um elemento crucial para que o bebê passe a limitar a sua agressividade inata: os vínculos amorosos de ligação que o infante desenvolve com a sua mãe.

Mais ou menos aos seis meses de idade, o poder mental de síntese do bebê já está desenvolvido suficientemente e, com tal evolução psíquica, a criança, começa a conceber a mãe como uma pessoa.

Com o surgimento de uma relação pessoal com o objeto amoroso primitivo, o bebê refreia o fluxo livre de sua agressividade e, nasce assim, o desejo de continuidade e manutenção relacional. Esta é a base estrutural da ligação amorosa, a partir desse processo a culpa aparece como um afeto reparador que tenta minimizar e refrear uma intenção destrutiva, disposição, que, tinha fluxo livre antes da síntese pessoal surgir.

Porém, o que queremos destacar em nosso estudo é, que, o surgimento do objeto-mãe marca uma grande evolução mental no bebê, bem como, sinaliza uma maior capacidade interna de integração objetal. Semelhantemente, algo muito próximo, ao que descrevemos no bebê, aconteceu coletivamente com os nossos primitivos antepassados.

Hoje sabemos, que enquanto são predominantes às formas animais nas gravuras paleolíticas, o mesmo não aconteceu com as muitas esculturas feitas no mesmo período.

Os vestígios arqueológicos indicam que a forma feminina foi o principal tema escultórico do homem primitivo. Diversas estatuetas femininas, esculpidas em ossos, pedras ou marfins de mamute, foram encontradas por inúmeros pesquisadores (Campbell, 2000).

Um aspecto notável em tais estatuetas, é a valorização da nudez como um símbolo de profundidade natural, foram encontradas mais de cento e trinta esculturas femininas nas cavernas paleolíticas, entre todas essas, apenas duas delas parecem estar vestidas com uma espécie de roupa sacerdotal (Campbell, 2000). Como a grande maioria destas estatuetas foram encontradas em cavernas-santuários, a nudez em questão não deve ser interpretada como algo profano, tais ícones, representam uma arte sagrada e não uma arte erótica das cavernas.

Essas imagens sagradas das cavernas, sempre representam a forma feminina com ancas largas e exuberantes e a obesidade das formas representadas é marca maior desta produção artística. É evidente que tais representações simbólicas demonstram inquestionavelmente que a forma feminina era a materialização da própria potência natural do mundo primitivo.

Como não poderíamos deixar de ressaltar, todas as imagens encontradas destacavam em sua forma esculpitória, seios extremamente exagerados, tal objeto mágico farto não está ausente em nenhuma estatueta.

Essas muitas estatuetas de Vênus no Paleolítico superior representam, uma forma de culto rudimentar, onde a figura feminina é a representação da força mágica de origem, por isso, muitas das esculturas representam mulheres grávidas; parir era um ato mágico de criação, fenômeno peculiar da natureza feminina.

Não devemos esquecer que os homens primitivos viviam presos ao mais profundo temor, as diversas esculturas de deusas-mãe, eram criadas magicamente como imagens protetoras, além de gerarem, protegiam com os seus gigantescosseios o adorador; a mulher era vista não só como uma criadora, mais também como uma mantenedora.

Sem dúvida nenhuma este culto embrionário ao feminino, foi posteriormente ampliado nas civilizações agrícolas posteriores, dando origem a uma forma mais organizada de culto a grande “Mãe Terra”.

OS PRIMÓRDIOS DO PENSAMENTO TEOLÓGICO

Como já frisado em nosso estudo, o culto destinado à deusa-mãe é muito antigo, estima-se que o mesmo remonta pelo menos 20.000 anos a.C.

Entre 10.000 e 6.000 a.C, mudanças climáticas modificaram profundamente as condições de caça, e nos períodos entre Mesolítico e o Neolítico uma nova organização social começou a surgir.

No Paleolítico superior o homem primitivo que era essencialmente nômade, dependia exclusivamente da caça de grandes animais selvagens, no período intermediário chamado de Mesolítico isto começou a mudar e, no     Neolítico o sedentarismo já estava solidificado, neste período começou a agricultura e a criação de animais.

Com a formação de aldeias de agricultores e criadores os ritos religiosos passaram a ser promovidos coletivamente e acontecerem de forma mais sistemática, é próximo a este período que as crenças religiosas se cristalizaram. Gradativamente a religião natural e anímica foi sendo substituída por uma religião mais organizada, a religião natural cedeu lugar a religião social.

Paulatinamente a religião natural, que tinha a mulher como seu símbolo maior, foi sendo superada por uma religião artificial, onde o homem assume o lugar de centro fálico do novo sistema religioso.

Essa mudança dos seios protetores para o falo poderoso, também promoveu mudanças na mitologia do homem primitivo; ele deixou de enfocar as plantas e animais selvagens em suas elucubrações míticas, para enfocar um “mundo social etéreo” (mundo imaginário que foi se cristalizando), paralelo ao mundo social real que começava a se desenvolver.

Sua nova vivência comunitária fez com que sua religiosidade servisse a novos anseios, surge à idéia de justiça divina, uma forma fantasística de compensação pela falta de justiça terrena, que, marca predominantemente, as sociedades primitivas.

As antigas religiões Totêmicas são formas intermediárias entre a pré-religiosidade anímica e religião falocêntrica de cunho teológico.[2]

Os indícios históricos são abundantes e bem precisos no que diz respeito ao surgimento da religião patriarcal, certamente entre 5.000 e 4.000 a.C, o pensamento teológico se firmou, com isso uma razão teocêntrica dominou o pensamento humano até aproximadamente 500 a.C.

Inicialmente as mitologias antigas eram transmitidas oralmente, com o surgimento da escrita, os diversos livros sagrados começaram a ser compilado por escribas, é provável que tais coleções sacras, entre 2.000 e 1.000 a.C, já se encontravam parcialmente formadas.

O PENSAMENTO MITOLÓGICO

Na primeira parte de nosso estudo procuramos demonstrar sinteticamente como aconteceu o despertar da consciência sensível no homem. No estágio anímico de sua evolução hominal, o ego e o não–ego, não eram muito bem diferenciados pelo vivente, já no estágio posterior, o teológico, a organização mental do homem evoluiu significativamente, fato que facultou uma melhor estruturação cultural e social.

Foi exatamente no período teocêntrico do pensamento humano, que as maiores tradições mitológicas foram criadas. Inspirados em sua organização social hierárquica, o homem primitivo criou um mundo espiritual onde pululavam miríades e miríades de deuses criados pelas suas fortes elucubrações mentais.

Os diversos mitos que falam de um paraíso perdido, escondem inconscientemente em sua parte oculta e latente, uma referência imanifesta da ruptura hominal produzida pela evolução humana.

Para provarmos esse nosso pressuposto, basta evocarmos e analisarmos um conhecido mito de nossa tradição ocidental: O Paraíso Perdido de Adão e Eva.

Como o supracitado mito é por demais conhecido, tomaremos a liberdade de citá-lo livremente sem nos preocuparmos em tecer uma transcrição literal do mesmo.

No mito Hebraico, Adão e Eva são criados por Deus e postos como zeladores no belo e tranqüilo jardim do Éden.

Os dois moradores são descritos como seres ingênuos e unicamente preocupados em procriarem para encher a terra com seus muitos descendentes. Andavam, de acordo com o relato mitológico, “nus” entre os muitos animais que habitavam o belo jardim.

Para que a paz e a tranquilidade continuassem a reinar, os dois hóspedes só deviam fazer valer uma ordenança divina; os mesmos poderiam comer de todas as árvores do paraíso, com exceção de uma que estava no meio do jardim, ela é denominada no relato mítico pelo nome de “Árvore do bem e do mal”.

O final da história é notoriamente conhecido por todos; Eva é seduzida por uma astuta serpente falante, e, acaba por comer a fruta proibida, essa mulher mítica, segundo relato, não satisfeita com o seu delito, induz Adão a cometer o mesmo crime.

Depois do mal feito, Deus se vê obrigado a expulsar o casal do paraíso, afinal… “O homem se tornou como um de nós, sabendo de agora em diante distinguir o bem e o mal” (Gen. 3:3-6).

Distinguir entre o bem e o mal nesse relato fantástico é um sinônimo de perda da ingenuidade original, após pecarem contra a regra divina, eles se sentem envergonhados de estarem “nus”, fabricam roupas rústicas e vão habitar a partir de sua condenação num lugar fora do paraíso.

Em suas recém inaugurada consciência moral reverberavam as fatídicas palavras: “Tu és pó e ao pó voltarás( Gen. 3:19).

Nesse desfecho trágico, o homem ganha forçosamente a consciência de sua mortalidade e, a partir desse momento, passou a conviver com a dor e o sofrimento.

Afinal de contas, que verdades essenciais se escondem atrás deste pueril relato mitológico?

Antes de responder a essa pergunta é importante ressaltarmos, que muitos especialistas ficaram intrigados com o fato, de que relatos semelhantes ao de “Adão e Eva”, podem ser encontrados em diversas culturas, com pequenas e, às vezes, insignificantes diferenças.

Conhecemos e concordamos em parte com a opinião sociológica, que diz que o mito é a tentativa de compreender por um certo reducionismo fatos naturais, como o homem primitivo não tinha bases científicas para examinar o mundo natural, mitologizava fenômenos como a morte, as doenças, terremotos e outras ocorrências naturais.

Porém, ao psicanalisar os mitos superamos esse postulado sociológico, pois se tal opinião é correta até certo ponto, torna-se simplista quando pretende ser toda verdade a cerca dos mitos. A psicanálise descobriu que construir mitos é um mecanismo autônomo de nosso psiquismo, e por detrás de contos aparentemente absurdos, escondem-se sínteses históricas e existenciais complexas.

Psicanalisando a história de Adão e Eva, podemos encontrar dois níveis sobrepostos na narração. Primeiro encontramos um plano micro-existencial que é a discrição metafórica da evolução individual do ser e, depois um segundo desdobramento macro-existencial, que faz referência à evolução hominal que aconteceu com o Homem como gênero, sendo que os dois planos não se excluem, ao contrário se complementam eufonicamente.

Temos no primeiro plano, memórias inconscientes do indivíduo e, no segundo plano existencial, memórias ontogenéticas históricas da espécie humana.

Na interpretação micro-existencial, o paraíso perdido é uma referência inconsciente da vivência infantil, a inocência do casal edênico é a insinuação da indiferenciação egóica e sexual dos primeiros anos do infante. A serpente é um símbolo do elemento fálico de castração que coloca fim ao romance edipiano. Ao sentirem vergonha de sua nudez e se vestirem, aceitam a proibição do incesto, e com isso firma-se internamente o Superego.

Comer o fruto proibido é um símbolo do ingresso no real, pois ao pecarem abandonam o mundo fantástico criado pelas suas elucubrações internas e, desta maneira, adentram o mundo das exigências reais.

O sentimento de culpa que os personagens do drama mitológico desencadeiam após o “pecado original” é uma metáfora inconsciente dos diversos afetos ambíguos que a criança enfrenta dentro da triangulação originária.

Assim, a primeira fase do mito que se sucede antes do pecado, corresponde à fase arcaica de formação e estruturação do indivíduo. A segunda fase nasce com a castração, nesse momento crucial da construção psicoafetiva o infante é inserido no real e, pela intromissão do agente fálico é obrigado a partir deste momento, a respeitar as leis domundo de fora.

Em resumo, o primeiro nível da lenda judaica fala simbolicamente da curiosidade infantil e do desdobramento subseqüente da mesma: a individuação frente ao princípio da realidade.

O segundo nível do mito sai do âmbito do indivíduo e invade a esfera do coletivo, por essa extensão fala-se de um animal desnaturalizado que se desprendeu pela sua hominização de seu mundo original e, acabou por criar um mundo à parte: o mundo humano.

O conteúdo latente do mito de Adão e Eva, no nível que consideramos ontológico, revela implicitamente a transição hominal acontecida nos primórdios da história humana.

É dito para o casal, que eles poderiam comer de todas as árvores do jardim, porém, não poderiam desejar o fruto proibido, pois no mito, tal ato é visto como uma grave transgressão á ordem natural.

Fica claro no mito, que quando o homem resolveu ir além de sua necessidade ele pecou, e a partir deste momento houve uma rebelião contra o estado natural de sua existência fenomênica.

A palavra hebraica para pecado é hhattá’th, e em grego hamartía ambas trazem o significado de errar o alvo, ou seja, o pecado é um desvio de uma ordem original superior.

Como deve ser entendida psicanaliticamente tal enigmática ordem original ?

Antes da consciência do si-mesmo ser atingida pelo homem, ele era apenas mais um animal ajustado ao mundo natural e a ordem original que regia os seus movimentos no mundo, era a ordem instintiva.

Essa primeira fase de maturação hominal pode ser denominada de fase biológica e, sua principal característica morfológica é o determinismo instintivo.

O Ser humano, propriamente dito, só surgiu na fase seguinte; devemos chamar essa fase posterior de simbólica, é nela que temos o nascimento do universo subjetivo humano e, o mundo concreto é reconstruído internamente, a abstração conceitual passa a ter maior valor do que a própria percepção sensível.

Com a estruturação do mundo simbólico o homem ultrapassou suas exigências fisiológicas pautadas na necessidade instintiva e ganhou outro mundo: o mundo do desejo. Portanto, o pecado original é o ingresso do ser no campo do desejo, consequentemente, o pecado mitológico do relato primitivo, fala da mudança de esfera existencial. O homem deixou de ser prisioneiro de um determinismo biológico infalível, para assumir a característica básica de sua essência: a contingência.

Psicanaliticamente, podemos dizer que o homem é filho do pecado, ele nasceu de uma transgressão original que o fez ir além da mera necessidade fisiológica.

O juízo de valor empregado pela religião com referência ao pecado original é falso, pois o pecado original não é um ato criminoso, ao contrário, foi a condição essencial e necessária para o surgimento do ser humano.

A expulsão executada após o pecado é uma referência latente da desvinculação hominal frente ao primeiro estágio biológico. Sair do paraíso é uma metáfora ontológica do rompimento parcial gerado pelo desarraigamento natural promovido pela ampliação consciencial no homem.

Assim, ao “errar” o alvo biológico de sua natureza física, o homem criou uma segunda natureza; transformou-se em um ser desnaturalizado e errante no sentido estritamente biológico, porém, em seu sentido mais amplo foi tal estrutura flexível e impermanente que o lançou na transcendência.

O desejo na vida psíquica é uma bifurcação, aponta para uma aparente necessidade pronta a ser satisfeita por um simples ato, porém nenhum ato é verdadeiramente simples, pois sempre esconde uma atitude inversa e possível no campo da contingência, não existe um porto seguro, mesmo um ato que promova uma satisfação ao ser, será seguido por outras tantas possibilidades, esse infinito deslizar do desejo é o anúncio de uma ausência que marcará indelevelmente a qualquer pretensa presença.

Na natureza o homem é o único animal que tem consciência de sua morte, portanto, seu senso de temporalidade é sempre moldado por uma noção interna de finitude, por conseguinte o mito de Adão e Eva termina com a sentença: Tu és pó, e ao pó voltarás.

A parte final do relato mítico traz embutido implicitamente a última fase da evolução hominal: a fase social.

Ainda dentro do paraíso, Adão e Eva começam a ter sentimento de culpa e de vergonha, quando ouvem a voz deDeus se escondem por causa da sua nudez.

Para entender tal relato antropomórfico precisamos recorrer novamente à teoria, pois, fala-se no texto de um sentimento moral que revela o que chamamos de alteridade.

A divindade em questão deve ser entendida como uma referência ao Superego, e a vergonha que os dois sentem, sugere de forma latente um processo adiantado de estratificação social.

É evidente que esse fragmento do texto, indica uma habilidade maior de formar símbolos mentais, diferente da primeira fase, a biológica, que essencialmente é um estágio não-simbólico, na fase social a estruturação simbólica é tão organizada que permite a internalização plena da linguagem.

Com a categorização e nominação de objetos e sensações, o nível de abstração atingiu um estado de ressonância psíquica, capaz de inserir o outro no campo de nossas múltiplas objetivações existenciais, a partir desse nível o homem passou a viver para o outro e no outro; isso é o que nominamos de alteridade.

Ao saírem do jardim do Éden, o casal passa a apascentar rebanhos e cultivar novas terras, com esse desfecho temos o fim da vivência paradisíaca do famoso casal hebreu.

Como é comum a linguagem mitológica, eventos cosmológicos e antropológicos interagem; certamente isto quer indicar que em um começo sagrado existia uma fusão entre o divino e o humano, os mitos etiológicos sempre são cridos como histórias sagradas que contam a verdadeira versão do princípio de todas as coisas.

As diversas teogonias, cosmogonias e antropogonias primitivas são relatos que falam da irupção do sagrado no mundo natural, tais mitos descrevem as diversas façanhas dos entes sobre naturais que organizaram o caos e produziram aprimeira criação.

Uma outra particularidade notável nos diversos mitos primordiais é a idéia de que todos os eventos relatados nas histórias sagradas aconteceram fora do tempo profano, o tempo mítico das origens é um tempo sagrado, portanto, é um fragmento temporal especial onde os deuses e heróis interagiam ativamente com os nossos ancestrais.

Diferente do tempo sagrado, o tempo comum e profano é o tempo da ação dos homens, todos os mitos primordiais falam de algo ruim que aconteceu e ocasionou um rompimento com o tempo sagrado, assim, o tempo profano é concebido como o começo do sofrimento e da degeneração humana.

É certo que esse sentimento de rompimento arcaico que nos aludem os diversos mitos antigos, é o sentimento inconsciente da insegurança que contraímos ao nos separarmos parcialmente da natureza, e em plano individual, é o sentimento que vivenciamos, ao nos separarmos das vinculações arcaicas que temos com nossos primeiros cuidadores (pais).

No pensamento mítico o tempo profano tem sempre um começo, meio e fim, e ocorre durante um lapso de tempo no cronograma sagrado, a função do mito é anunciar que a pureza primordial que parece estar perdida reaparecerá no final.

Portanto, o mito abriga sempre um ideal prospectivo em reflexo a um ideal regressivo, conta-se o começo e, antecipa-se escatologicamente o fim. Esse lapso de tempo mitológico é uma referência inconsciente ao período de latência vivido por todos os seres humanos, já a promessa adventícia do retorno do paraíso, promana concomitantemente do ideal do ego individual e o ideal civilizatório coletivo. Tais desdobramentos ideais apareceram simbolicamente na figuração romântica de um paraíso recuperado.

Devemos ressaltar ainda a idéia universal de um retorno ao estado primordial, em todos os mitos de origens anuncia-se profeticamente um novo começo, o paradigma mítico é sempre estruturado a partir da promessa de uma recriação.

Como se estabeleceu inconscientemente esse desejo irresistível de retorno e, qual o peso de tal desejo na vivência egóica?

Para que possamos entender como surge psiquicamente o desejo de retorno e a sua importância na vivência psíquica, devemos, estabelecer que a estruturação psíquica arcaica passa por uma série de “começos” e “fins”, até que a criança consiga razoavelmente controlar a sua ansiedade frente à mutabilidade endógena e exógena.

Quando a criança atinge os seis meses de idade, sua constituição egóica está satisfatoriamente bem formada e, próximo desse período de maturação um evento singular se desenvolve.

Segundo as tradições místicas, o caos primitivo precede a organização do nosso mundo material e visível, semelhante ao caos mítico, a mente da criança antes dos seis meses de idade encontra-se dividida num profundo universo confusional interno, e só existe em potência, pois nesse estágio não há a distinção entre ego e objeto.

Ainda citando referencialmente a seqüência mítica, o caos se organiza e surge o mundo fenomênico. Análogo a isso, no segundo semestre da vida do bebê, decorrente de uma maior organização psíquica, surge o mundo objetal.

Para a maioria dos mitólogos, as variadas e primitivas mitologias surgiram da curiosidade admirativa e, tais relatos sagrados são tentativas orais e literárias de lidar com o sentimento de perplexidade ante a soberba aparição do que existe.

Em nível micro-existencial, a criança é tomada pelo mesmo “espanto” frente ao que começa a vislumbrar, e como ápice deste delirante contato, descobre um eu que não-sou-eu. O primeiro não-eu da vida do infante é a mãe e, como primeiro objeto igual e diferente simultaneamente é, a primeira prova vindo do externo, de que existe, o revertério daquilo que eu penso que sou.

O encontro com o objeto-mãe, não é apenas um encontro, é na verdade uma revelação, por isso denominamos de “alterepifania” esse encontro arcaico.

A mãe é a primeira tese psíquica da existência de um outro que descobri a partir de mim, ao mesmo tempo, negá-la como eu, é afirmar meu próprio eu.

Por um certo tempo, a criança fica totalmente identificada como objeto-mãe, e a força de tal união é tão intensa na vivência infantil, que o desejo de fusão e de retorno ao grande útero marca fortemente a relação mãe-bebê.

As fantasias mitológicas de retorno tem sua origem na primeira identificação que o bebê desenvolve com a mãe e, quanto maior for a identificação com o objeto primário maior será na vivência posterior às fantasias regressivas de retorno.

Porém, como tal identificação mórbida é interrompida normalmente no processo de maturação egóica?

Se como afirmarmos a mãe se configura como tese primária da existência, o pai surge no universo psíquico da criança, como antítese daquilo que eu e minha mãe somos.

A díade transforma-se em tríade, o pai que é o outro, que não é o meu outro-eu, faz a criança perceber que nem tudo no universo é “composto” de mãe.

Com a triangulação originária a criança se des-identifica do objeto-mãe, e se identifica com o objeto-pai, para logo depois também des-identificar do segundo objeto. Ao fazer isso a criança não expurga totalmente os objetos primários de seu mundo interno, apenas promove uma síntese com o resíduo interiorizado e, usa tal suporte afetivo para emancipar-se e fixar-se como pessoa.

Podemos dizer, que de uma certa forma, todos os mitos primordiais são rememorações da triangulação originária, por esse motivo encontramos quase sempre a referência a uma tríade originária que atuava no tempo primordial das origens.

Os chineses construíram sua trindade de céu, terra e homem; os hindus compuseram sua trindade de Brama(criador) Vishnu (conservador) e Shiva (transformador); os egípcios de Osíris (pai), Ísis (mãe) e Hórus (filho). Já o Cristianismo inventou uma trindade composta de Deus, Jesus e o Espírito Santo, trindade originária que ocupa o centro do mito cosmogônico cristão.

O desejo inconsciente de retorno é tão ativo e forte em nosso mundo interno, que no pensamento mítico o retorno ao tempo primordial é possível por meio do rito.

Quando examinamos do ponto de vista psíquico os diversos rituais primitivos, logo percebemos que eles não são meras dramatizações para entreter os participantes, o ritual é sempre um retorno à origem, um regresso ao tempo sagrado dos deuses.

Nesse estado alterado de consciência o participante libera o inconsciente durante a cerimônia ritualística e compartilha do poder sobrenatural e, é convidado a recriar o universo.

O estado caótico primitivo é revivido, e a partir do mito o universo ganha uma nova significação.

Através da rememoração mítica faz-se presente uma crença mística de libertação remissiva, que tira o pecado do mundo e purifica o participante.

A respeito desse fato, o mitólogo Mircea Eliade, em seu valioso trabalho intitulado Mito e Realidade , faz o seguinte comentário pertinente ao rito:

 

“O tempo mítico das origens é um tempo “forte”, porque foi transfigurado pela presença ativa e criadora dos entes sobrenaturais. Ao recitar os mitos reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se, consequentemente, “contemporânea”, de certo modo, dos eventos evocados, compartilha da presença dos deuses ou dos heróis. Numa fórmula sumária, poderíamos dizer que ao “viver” os mitos, sai-se do tempo profano cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo “sagrado”, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável” (Eliade, 1972, p. 21).

 

Como é dito no texto supracitado, a pessoa torna-se contemporânea e colaboradora dos deuses, de forma velada, todos os ritos trazem uma série ininterrupta de provas, mortes e ressurreições, no fim dessa série sempre existe um recomeço, ou em termos mais propriamente mítico, uma radical e profunda recriação.

Do ponto de vista ôntico, essa regressão é uma viagem ao nosso passado natural, onde todos compartilhamos de uma ligação total e eufônica com a grande mãe natureza.

Do ponto de vista individual a regressão ritualística ou mítica, nos leva a casa paterna. Na verdade, os deuses e heróis são desdobramentos simbólicos de nossos pais, é por isso que o                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               componente emocional é tão forte e intenso no rito, inconscientemente estamos “reatualizando” nosso passado, ao mesmo tempo, em que, também confirmamos, nossos laços ancestrais. Em suma, o rito traz a tona afetos narcísicos de vinculação regressiva com a nossa história ontogenética e também individual.

Assim, para a psicanálise o verdadeiro primordial é o tempo primordial humano, o tempo mítico paradisíaco é uma referência aos primórdios de nossa história pessoal e, a estampa perspectiva de um paraíso a ser resgatado, é na verdade um reflexo formado pelo ideal do ego.

Tal verdade psicanalítica foi percebida e descrita por Freud da seguinte forma: “… há muito tempo atrás ele (o homem) formou uma concepção ideal de onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses. A estes atribuía tudo que parecia inatingível aos seus desejos ou lhe era proibido. Pode-se dizer, portanto, que esses deuses constituíam ideais culturais” (Freud, 2002, p.44).

Como Freud bem ressaltou no texto, pela força das fantasias compensatórias, os pontos débeis da existência humana são transformados positivamente pelo pensamento mítico, mitologizar é uma estratégia psíquica que visa manter o controle sobre nossa ansiedade.

Freud considerou a capacidade de mitificar inconscientemente o real, como uma estrutura autônoma de pensamento, onde a lógica tem pouco ou nenhum valor. Assim, o homem sempre mitificou e sempre mitificará aquilo que está fora dele, a criação de uma mitologia reflete a magnitude da potência interna de sintetizar o real e lhe conferir um sentido modelar.

Por isso, diferente da visão cientificista ingênua, que coloca o mito como sinônimo de engano, a psicanálise reconhece o papel estruturante que o mito desempenha na vida mental. O mesmo se configura como um sistema orientacional interno e, baseado nesse recurso fantasístico, o sujeito torna-se capaz de humanizar sua efêmera passagem pelo mundo.

Portanto, ao contrário do mito ser uma história pueril, sem um sentido profundo, o mito foi à primeira maneira psíquica encontrada pelo homem de conferir um sentido humano para as ocorrências fenomênicas. No mito o homem recupera, através de uma narrativa, o seu lugar narcísico no universo, mesmo não sendo, pode assim pensar-se, como o real motivo da existência de todas as coisas.

Na mente dos primitivos, o mito era sempre uma história verdadeira, portanto, como uma história sagrada e digna de fé, o relato mítico é sempre uma forma modelar para as variadas atividades humanas.

O respeito por tais relatos sagrados é facilmente constatado, quando, ao estudar as diversas civilizações antigas, que normalmente só dispunham da tradição oral para transmitir a mensagem mítica, logo descobrimos que todas elas reservavam um papel especial e notório ao poeta recitador, que agia como conservador da memória do povo comum.

É evidente, que ao homem moderno, é impossível ler as diversas cosmogonias e antropogonias como histórias verdadeiras e sagradas, porém, o conceito de sagrado deve ser resgatado por ele.

Etimologicamente as palavras portuguesas sagrado ou santo, equivalem em sua raiz, ao significado dado em diversas outras línguas, a saber: separado, exclusivo, imaculado ou limpo.

Em sentido individual, toda pessoa precisa de uma mitologia pessoal, a mesma age internamente como uma sínteseexistencial, portanto, uma configuração mítica pessoal passa a representar existencialmente algo separado ou exclusivo, pertencente somente àquele que formata o micro-mito.

Uma vez que o mito pessoal é sentido como algo sagrado, em conformidade com tal sentimento interno, o indivíduo ganha um sentido pessoal e intransferível para a sua existência fenomênica.

A sacralização de nossa história pessoal nos leva a conquista da psicocentralização, pois, a verdadeira história do mundo é, verdadeiramente, a nossa história pessoal.

Assim, o pensar mitológico continua a ser útil ao homem moderno, desde que saiamos do seu aspecto superficial e transitório, e aceitemos mergulhar nas águas profundas das significações milenares, sobrepostas e organizadas pelas espessas escamas do tempo.

O mito continua vivo, pois ele nasce do espanto daquele que vive; o mito se alimenta do pensamento e, se é verdade que o mito depende do homem, o homem também depende do mito, pois, sem o mito, não há liberdade para o pensamento. O mito em sua essência é uma vital e revigorante abertura ao simbólico.

 

BIBLIOGRAFIA

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BAYARD, Jean – Pierre. Sentido Oculto dos Ritos Mortuários.  São Paulo, Paulus, 1996.

MODELL, Arnold H. Enciclopédia de Psicologia e Psicanálise. Rio de Janeiro, Imago, 1973.

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BÍBLIA. Português. Tradução Ecumênica da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2002.

ELÍADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo, perspectiva, 1972.

FREUD, Sigmund. O Mal Estar na Civilização. Rio de Janeiro, Imago, 2002.

SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Rio de Janeiro, Vozes, 1997.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Rio de Janeiro, Imago, 1999.

 


[1] Esse termo, foi montado a partir do conceito Heideggeriano de “ser-no-mundo” se refere essencialmente à capacidade da consciência de se relacionar com o mundo.

[2] Sugerimos ao leitor interessado em um estudo mais aprofundado do Totemismo, o abrangente trabalho de Émile Durkhein intitulado: As formas elementares de vida religiosa.

O CONCEITO FROMMIANO DO HOMEM

Autor: Prof. Me. Marcos de Oliveira

 

Nossa tarefa principal é dar nascimento a nós mesmos. (Erich Fromm)

 

Afinal de contas, passado mais de cem anos do nascimento de Fromm, por que a sua vasta obra literária, continua a nos provocar e a nos seduzir? Ainda mais, o que existe de tão importante no centro de tal obra, que justificaria recorrentes investigações modernas, em torno de tal construção epistêmica?

Podemos começar dizendo que, poucos autores, dentro e fora da seara psicanalítica, empreenderam de forma tão aprofundada, um amplo e genuíno diagnóstico dos nossos variados e quase infinitos males sociais modernos.

Fromm conseguiu as expensas de sua genialidade, montar uma coerente e sólida teoria crítica de nossa neurótica vivência social contemporânea.

Sua habilidade em nos seduzir e ao mesmo tempo nos provocar é fruto de um dom avassalador que consiste em apresentar de forma simples, idéias complexas e por vezes ambíguas.

Ao leitor atento, logo fica evidente sua enorme capacidade em sintetizar e sistematizar uma gama gigantesca de idéias e conceitos que, normalmente aparecem em outros autores, de forma hermética e muitas vezes complicada.

É importante frisarmos que a forma simplificada de Fromm nos apresentar suas interessantes teorias, não deve ser de forma alguma confundida com uma “superficialidade literária”, bem ao contrário disso, em suas muitas formulações inovadoras, Fromm deixa vazar sua enorme erudição e capacidade sintética, sem com isso, “complicar” aquilo que deve ser “explicado”.

A forte influência marxista que Fromm sofreu, desde o início de seu trabalho intelectual, fez com que ele ambicionasse uma psicanálise da “práxis”, ou seja, uma teoria prática que pudesse ser entendida e praticada por todos que honestamente se propusesse a entendê-la, seu interesse era escrever para “pessoas comuns”; todo o seu vasto conhecimento de sociologia, antropologia, história, psicanálise e filosofia, entre tantos outros temas por ele discutidos, se tornaram acessíveis a milhares de pessoas.

Fromm, ainda seduz exatamente por essa qualidade singular; ele conseguiu popularizar a psicanálise sem vulgarizá-la. Em sua obra podemos perceber uma profundidade que falta em outros teóricos da psicanálise, porém, em nenhum momento suas teorias se fecham num academicismo esotérico, seu estilo cativa por ser aberto e convidativo, Fromm sempre escreveu para ser entendido. Mas afinal de contas, qual é o centro nervoso de todas as suas teorias? Certamenteo homem.

Todo o edifício teórico frommiano se sustenta nos alicerces de uma filosofia humanística que privilegia o “homem” como centro nervoso de toda objetivação epistemológica psicanalítica. Para Fromm, o homem individual é uma porta de acesso ao “homem coletivo”, portanto, ao psicanalisarmos o homem particular, devemos nos ater aos vários fenômenos sociais e culturais que o formam, por isso, suas teorias não se restringem à análise parcial do sujeito individual, elas possibilitam um diagnóstico muito mais abrangente, ele foi o primeiro psicanalista a tentar organizar a audaciosa proposta de uma sócio-análise.

Ao estudar a superestrutura ideológica de nossa moderna sociedade capitalista e, toda base sócio-econômica derivada da mesma, Fromm utilizou potentemente todo instrumental psicanalítico para executar essa profunda e original investigação sócio-analítica.

Embora as primeiras tentativas de aproximação entre o freudismo e o marxismo tenham sido feitas por Adler e Reich, em nossa opinião, tal junção epistêmica só foi organizada como um corpo teórico coerente a partir da teorização frommiana.

Assim, frente à grandeza e profundidade evocada pelos escritos de Fromm, podemos dizer que esse grande teórico poderia muito bem ter existido à parte do movimento culturalista americano, no entanto, o movimento culturalista não seria o mesmo sem a participação deste ilustre psicanalista. Nas próximas linhas, intencionamos examinar panoramicamente o conceito que esse grande psicanalista faz a cerca do homem, acreditamos que tal estudo é muito oportuno, afinal, a grandeza literária desse autor, infelizmente, tem sido quase sempre, desconsiderada no Brasil.

 

O Conceito de Homem em Fromm

Não temos como interesse primário em nosso estudo, uma organização metódica e cronológica dos escritos frommianos, objetivamos de forma muito menos pretensiosa, apenas expor algumas das idéias principais desse autor.

Para começar bem nossa empreitada, analisaremos sucintamente o conceito que Fromm nos apresenta a respeito do homem.

Em seu livro “O Coração do Homem”, Fromm ao constatar que a maior parte da história humana “foi escrita com sangue” e, sua permanência como espécie “é uma história de violência contínua”, faz a seguinte pergunta: O homem – lobo ou cordeiro? (Fromm, 1974, p.17).

Ao analisar os dois lados da questão proposta, Fromm começa abordando o lado lobo do homem, com interesse de levar os seus leitores à reflexão ele escreveu o seguinte:

 

…Foi Hitler sozinho que exterminou milhões de judeus? Stalin sozinho exterminou milhões de inimigos políticos? Esses homens não estavam sós; tinham milhares de homens que matavam para eles, torturavam para eles, e faziam isso não só de bom grado como até com prazer. Não vemos a inumanidade do homem para com o homem em toda parte – na guerra implacável, no assassinato e estupro, na exploração desapiedada do fraco pelo forte, e no fato dos soluços dos torturados e sofredores tão freqüentemente terem caído em ouvidos surdos e corações empedernidos (Fromm, 1974, p. 18).

 

Depois de levantar essas inquietantes questões, Fromm fala da avaliação que alguns homens fizeram frente a tamanho horror, em destaque ele cita o filósofo político Hobbes, lemos o seguinte:

 

Todos esses fatos levaram pensadores como Hobbes a conclusão de que homo homini lupus (o homem é o lobo para o seu semelhante); levaram muitos de nós atualmente a admitir o homem como sendo mau e destruidor por natureza, um matador que só pode ser refreado em seu passatempo favorito pelo medo de matadores mais poderosos (Fromm, 1974, p.18).

 

Nesse fragmento Fromm aborda uma crença ainda muito generalizada; a crença de que de forma inata o homem é um ser destruidor e essencialmente mal.

Fromm nessa obra também registra o lado oposto desse pessimismo trágico, com o renascimento uma visão mais otimista surge, sobre isso ele escreve:…

 

“Pensadores do renascimento e posteriormente do iluminismo deram um passo drástico em sentido oposto. Os últimos alegaram que todo o mal no homem nada mais era que o resultado das circunstâncias, donde o homem não ter realmente como escolher. Mudem-se as circunstâncias que produzem o mal pensavam eles, e a bondade original do homem surgirá quase automaticamente” (Fromm, 1974, p.21).

 

Simetricamente oposta à visão pessimista de uma “maldade original”, alguns outros (como por exemplo, Rousseau com a sua teoria do bom selvagem inocente) defenderam uma “bondade original” como base essencial da natureza humana.

Fromm rejeita tanto a teoria da maldade original como também da bondade original. Para ele, tanto uma, como a outra, são fórmulas reducionistas que mais complicam que explicam.

Ele defende um instinto agressivo inato que é em essência “neutro”, porém, ao ser socializado esse instinto é direcionado culturalmente para o “bem” ou para o “mal”, sendo que essas inclinações morais serão determinadas e construídas dentro do processo conjuntivo de assimilação e aculturação.

Portanto, tanto o potencial destrutivo como o potencial construtivo, tem origem em uma mesma fonte, o que determina o uso de uma vertente mais do que outra, é a estrutura de caráter de determinado sujeito.

Para Fromm, a violência não é um ato puro e essencial, é na realidade uma forma de defesa orientada culturalmente e mascara muitas vezes um sentimento de impotência inconsciente, sobre isso podemos ler:

 

…O homem possui um potencial de violência destruidora e sádica (…) o coliseu em Roma, no qual milhares de pessoas impotentes obtinham seu prazer máximo ao ver homens sendo devorados por feras ou matando-se uns aos outros, é o grande monumento ao sadismo.(…) A violência compensatória é o resultado da vida não-vivida e deturpada, e seu resultado necessário. (…) A única cura para a destrutividade compensatória é o desenvolvimento do potencial criador do homem, da capacidade dele pra fazer uso produtivo de seus poderes humanos (…) a violência compensatória não se acha, como a violência reativa, a serviço da vida, é um sucedâneo patológico da vida, indicando a deformação e vacuidade da vida. Mas em sua própria negação da vida, ainda demonstra a necessidade do homem de estar vivo e de não ser um inválido (Fromm, 1974, pp. 34-35).

 

Na visão frommiana, mesmo a maldade e a destrutividade perversa, são sistemas orientacionais que propiciam certa visão de mundo a seus executores, o que está em jogo é uma ação teleológica determinada pelo caráter, com isso, ele rejeita totalmente a idéia de um “instinto de morte”, como base para a agressividade humana.

De acordo com Fromm, existem no homem a partir de seu ingresso na cultura, duas tendências volitivas básicas para suas ações existenciais: a tendência biófila e a tendência necrófila, ambas coexistem em todo ente humano. Ele explicou isso da seguinte maneira:

 

… Isto não quer dizer que uma pessoa seja forçosamente necrófila ou biófila de todo. Há algumas totalmente devotadas à morte, e estas são insanas. Há outras inteiramente devotadas à vida, e elas nos impressionam como tendo atingido a mais elevada meta que o homem é capaz. Na maioria, acham-se presentes às tendências biófilas e necrófilas, mas em várias misturas (Fromm, 1974, p.41).

 

O ser humano só existe “em mistura”, todos temos tendências necrófilas e biófilas, o que na verdade importa saber segundo Fromm, é qual das duas tendências se mostra mais forte em nossa configuração de caráter, essa propensão adquirida é que determina qual orientação básica que usaremos em nossa vivência cotidiana.

Mas afinal, o que determina um caráter necrófilo, ou seu oposto, o caráter biófilo?

Para responder essa pergunta difícil e complexa, Fromm apela para a descoberta freudiana, isso é feito assim:

 

Freud foi mais além de qualquer outro predecessor no atentar para a observação e análise das forças irracionais e inconscientes que determinam certas partes do comportamento humano. (…) Mostrou que esses fenômenos irracionais obedeciam a certas leis, podendo ser, por conseguinte, entendidos racionalmente. Ensinou-nos a compreender a linguagem dos sonhos e os sintomas somáticos, assim, como as irracionalidades do comportamento humano. Descobriu que estas irracionalidades, tanto quanto toda a estrutura do caráter de um indivíduo, eram, reações às influências exercidas pelo mundo exterior e particularmente às ocorridas durante a primeira infância (Fromm, 1978, p.18).

 

Com essas palavras fica evidente que Fromm acreditava que nossas ações e comportamentos dependiam de uma “estrutura”.  Para ele tal estrutura é o “caráter”, sendo que, como Freud, ele acreditava que tal base parcialmente fixa, formava-se na primeira infância. O que nós somos e como reagimos ao mundo, dependerá sempre dessa estrutura arcaica e invisível.

Com essa idéia estaria Fromm defendendo uma espécie de determinismo psíquico? E, se for essa noção defendida por ele, não seria isso pior que a idéia de um instinto moral?

Bem longe de defender um “determinismo psíquico” absoluto, o que seria de certa forma uma espécie de “fatalismo”, Fromm ao falar do homem, fala sempre de um ser livre para ser aquilo que decidiu ser, um ser sempre aberto para a liberdade. Em Fromm lemos:

 

“A existência humana tem início quando a falta de fixação das ações pelos instintos ultrapassa certo ponto; quando a adaptação à natureza perde seu caráter coercivo; quando o modo de agir não mais é estabelecido por mecanismos recebidos através da hereditariedade. Por outras palavras, a existência humana e a liberdade são desde o início inseparáveis. (…)” (Fromm, 1978, p.35).

 

Semelhante a Lacan, Fromm assinala que o homem só se torna verdadeiramente “homem” quando se desnaturaliza, ao se distanciar da natureza cria sua própria “natureza”; semelhante também aos filósofos existencialistas, ele está dizendo no texto supracitado que nossa essência é montada após sermos inseridos na existência.

O homem em Fromm é uma construção sempre inacabada, inicialmente tem as suas bases construídas pelos outros e perpetuamente se desconstruirá e se reconstruirá, ele permanece sempre como sistema aberto para muitas possibilidades do devir.

Quando o anseio humano de liberdade é frustrado, o homem se desumaniza, transforma-se num homúnculo, ou numa “coisa” sem vida produtiva. Sobre essa desumanização reativa ele escreveu:

 

… Embora o homem seja moldado pelas necessidades da estrutura econômica e social da sociedade, ele não é infinitamente adaptável. Não só existem certas necessidades fisiológicas que exigem imperiosamente sua satisfação, mas há, ainda, certas qualidades psicológicas e inerentes ao homem, que tem de ser atendidas e que provocam certas reações caso sejam frustradas. Quais são estas qualidades? A mais importante parece ser a tendência para crescer, para desenvolver e realizar potencialidades que o homem formou através da história – como, por exemplo, a faculdade de pensamento criador e crítico e a de variar as experiências emocionais e sensoriais. Cada uma dessas potencialidades possui seu dinamismo próprio; uma vez que se tenha formado ao longo da marcha de evolução, tendem a manifestar-se. Esta tendência pode ser suprimida e tolhida, mas a cada supressão correspondem novas reações, especialmente no aparecimento de impulsos destruidores e simbióticos. Assemelha-se, igualmente, que esta tendência geral para crescer – que é o equivalente psicológico da tendência biológica idêntica da origem a tendências específicas, tais como o anseio de liberdade e o ódio à opressão, uma vez que a certa liberdade é a condição fundamental para qualquer crescimento. Ainda mais o anseio de liberdade pode ser reprimido, pode desaparecer da consciência do indivíduo, mas mesmo assim não cessa de existir como potencialidade, e indica sua sobrevivência através do ódio, consciente ou não, de que sempre é acompanhada essa repressão (Fromm, 1978, pp. 226-227).

 

Em Fromm, o anseio de liberdade ganha status ontológico. Mesmo preso às suas necessidades materiais e situacionais, ele continua buscando a liberdade de ser sempre mais do que se é em determinado momento, como seu surgimento se deve estruturalmente há um “desajuste” da ordem natural, o homem é aquele que não aceitará nunca uma adaptação final para seu existir, sua natureza aberta aponta para todos os lados, por isso, está destinado a não aceitar nenhum destino pré-estabelecido.

E se por ventura o homem resolver abdicar de sua liberdade, e escolher o caminho da servidão a outrem?

Ao escolher não ser livre, fez sem saber, o uso de sua liberdade de escolha. Fromm, só reconhece como sadio, o homem que busca a liberdade, o contrário de tal busca é encarado como sinônimo de desequilíbrio psíquico.

A repressão do anseio de liberdade segundo Fromm, gera “impulso destruidores” e “simbióticos”, o dominado continua a odiar o dominador, mesmo que não tenha total consciência da amplitude de tal sentimento, e por sua vez o dominador, para sentir-se livre, fomentará a todo o momento a opressão; é o típico caso do carcereiro que fica preso aos cativos que ele vigia!

 

A Situação Humana

Na perspectiva frommiana o homem é sempre um ser “situado”, ele não flutua livre e solto, ao contrário disso, ele se torna verdadeiramente livre ao tomar consciência das bordas limitadoras de sua existência contingente.

O homem é o infeliz ser que leva dentro de si a consciência da morte, é o mensageiro de seu próprio agoro, é o caminhante que sabe que caminha em direção a sua morte, porém, mesmo crente no vaticínio certo de seu fim, tem que continuar a viver.

Embora Fromm não explore muito profundamente o aspecto angustiante do ato de existir, não seria um erro dizer que em alguns momentos ele bem que lembra um filósofo existencialista, embora tenhamos que admitir que ele, diferentemente dos citados, preserva em seus escritos um certo tom ingênuo e doce de otimismo messiânico.

Uma crítica a certas posturas teóricas de Fromm seria oportuna em uma análise mais profunda de suas idéias, porém, tal análise crítica foge dos limites de nosso presente trabalho. Para não desviarmos de nosso caminho, é necessário voltarmos ao texto frommiano e, fazendo isso, entenderemos como ele belamente descreve a situação humana, lemos:

 

… O nascimento do homem, tanto ontogênica quanto filogeneticamente, é um acontecimento negativo. Ele carece da adaptação instintiva a natureza, carece de vigor físico, é, ao nascer, o mais desamparado de todos os animais, e necessita de proteção durante muito mais tempo do que os demais. Perdeu a unidade com a natureza e não lhe foram dados os meios para viver uma nova existência fora da natureza. (…) A evolução do homem se baseia no fato de haver deixado a sua pátria original, a natureza, e jamais poder regressar a ela, jamais poder voltar a ser animal. Só há um caminho para ele: emergir completamente de sua pátria natural, encontrar uma nova pátria – criada por ele ao tornar o mundo humano e ao tornar-se humano também (Fromm,1974, p.37).

 

O homem é filho de uma negatividade, é isso que é dito em suma pelo texto acima. Dizendo isso de outra forma; o homem é filho de um buraco, de um abismo, nasceu quando se negou a morrer ajustado, perdeu sua unidade e acabou se achando na dualidade de viver como uma “rachadura”. Ao perder sua natureza animal, fabricou uma “outra natureza”. Sua natureza cultural é uma tampa, ou se preferirmos um tampão, uma rolha inventada para tampar o abismo das nossas incertezas lógicas, a mesma lógica que parimos ao nos depararmos com o estranho rosto da existência.

Ao criarmos a dialética do saber–que–não–sabia tampamos e, ao mesmo tempo, reforçamos a distância entre as partes; o homem é um ser inconformado, e, é o incomodo que o mantém e o faz evoluir. Essa natureza bipartida é descrita da seguinte forma por Fromm:

 

“O problema da existência do homem é, portanto, único em toda natureza: ele saiu da natureza por assim dizer, mas ainda está nela; é em parte divino e em parte animal; em parte infinito, em parte finito. A necessidade de encontrar soluções sempre renovadas para as contradições de sua existência, de encontrar formas cada vez mais elevadas de unidade com a natureza, com os seus próximos e consigo mesmo, é a fonte de todas as forças psíquicas motivadoras do homem, de todas as suas paixões, seus afetos e ansiedade” (Fromm, 1974, p.38).

 

No texto supracitado Fromm diz que o homem é um ser buscador. Movimenta-se atrás de respostas para a razão de sua existência; o que ele não percebe é que a “razão” foi algo que ele mesmo inventou, ele é o único animal que elabora perguntas sobre sua existência, o que o incomoda é que a natureza é muda, as únicas respostas que esse ser desamparado recebe, são aquelas que ele mesmo forjou em seu percurso histórico e existencial.

Em sua pretensão epistêmica o homem ensaia a pose de um deus, porém, a silhueta de uma divindade não é a sua forma final, bem ao contrário disso, morre como um animal qualquer. Não obstante até nisso a cultura tenta lhe enganar, ao descer à sepultura, embora o corpo se desfaça, o caixão pela sua arquitetura tenta ocultar o derrisório termo daquele que se apaga.

O homem busca entender aquilo que em plano mais profundo não pode ser entendido, e por vezes acaba preso na fina crosta dos saberes que o impedem de vivenciar a vida “como ela é”.

A verdadeira reflexão é aquela que não busca certezas, mas prepara o homem para conviver com a dúvida. A situação humana é angustiante, mas não é desesperadora. Refletir sobre nossa finitude é um ato de sabedoria não de loucura.

 

 

A Correlação Humana

Tanto para Fromm, como para os demais psicanalistas da escola culturalista, o nível relacional, bem como, a qualidade de afetos positivos que dispensamos ao nosso próximo, serve como indício de sanidade ou insanidade mental. Aquilo que oferecemos tanto qualitativavemente, como quantitativamente aos outros, define de certa maneira o que somos e o quanto somos afetivamente no mundo real.  Isso foi dito da seguinte maneira por Fromm:

 

… A necessidade mais profunda do homem é a necessidade de superar seu estado de separação, de deixar a prisão a sua solidão. O fracasso absoluto em alcançar tal objetivo significa a insanidade, porque o medo pânico do isolamento completo só pode ser superado por uma retirada tão radical do mundo exterior, que o sentimento de separação desaparece – porque o próprio mundo exterior, do qual se está separado, desaparece (Fromm, 2000, p.12).

 

Nesse texto Fromm mostra que o sentimento de solidão existencial que surgiu com a evolução hominal, marca sempre o vivente com um sentimento interno de “separação”, os vínculos que criamos com nossos semelhantes, desempenham um papel muito importante para o controle dessa “ansiedade existencial de separação”. Ao rejeitarmos o contato produtivo e necessário com o outro, de acordo com Fromm, estamos a um passo da loucura.

Porém, fora dessa situação drástica de fechamento na loucura, muitas vezes falseamos as nossas relações interpessoais, Fromm nos diz isso da seguinte maneira:

 

… O homem pode tentar tornar-se uno com o mundo pela submissão a uma pessoa, a um grupo, a uma instituição, a Deus. Dessa forma ele transcende a separação de sua existência individual por tornar-se parte de alguém ou de algo maior do que ele próprio, experimentando a identidade por intermédio do poder a que se tenha submetido. Outra possibilidade de superar a separação está na orientação oposta; o homem pode tentar unir-se ao mundo pelo poder sobre ele, por tornar os demais parte de si, e assim transcender a sua existência individual pela dominação. O elemento comum à submissão e à dominação é a natureza simbiótica da relação. As duas pessoas envolvidas perderam sua integridade e liberdade; vivem uma da outra e uma para a outra, satisfazendo o anelo de intimidade, porém sofrendo a falta de força interior e confiança própria, que requerem liberdade e independência, e, mais ainda, constantemente ameaçadas pela hostilidade consciente e inconsciente que nasce da relação simbiótica (Fromm, 1974, p. 43).

 

Na falta de genuínas relações humanas, o neurótico cria “vícios relacionais” que aplacam momentaneamente sua angústia. Como diz Fromm, em suas estratégias desesperadas pode se tornar totalmente submisso a uma vontade alheia a sua, ou ao contrário disso, tentar dominar a todos que o rodeiam. Segundo Fromm, tanto quem domina como quem é dominado, vive uma relação viciada chamada por ele de “simbiose macabra”.

Nessa relação desastrosa os envolvidos celebram um “conluio silencioso”, o que existe de fato é uma estranha e invisível “solidão a dois”. Embora os celebrantes se nutram mutuamente do vazio do outro para esquecer o seu próprio vazio, nem sempre tal recurso tem efeito, quando a união neurótica é por algum motivo questionada internamente ou externamente, o nível de ansiedade torna-se muitas vezes insuportável.

É importante ressaltarmos que a “simbiose macabra” de Fromm, nem sempre é estabelecida entre pessoas; a pessoa pode ficar dependente de uma instituição, de uma ideologia ou até mesmo de uma filosofia de vida, o importante é entendermos que tal movimento visa criar um falso senso identitário.

Fromm nos alerta que na atual sociedade capitalista é cada vez mais comum essa dependência neurótica.

Em seu livro “A Revolução da Esperança”, Fromm trabalha com o conceito desenvolvido por “Lewis Mumford” de “megamáquina”, conceito muito interessante que ilustra bem como o homem é instrumentalmente separado de seu semelhante, ele escreve:

 

A “megamáquina” é o sistema social totalmente organizado e homogêneo no qual a sociedade tem funções tais como uma máquina e os homens como as de suas peças. Pela total coordenação, pelo “constante aumento da ordem, porém, previsibilidade e, principalmente, controle”, esse tipo de organização alcançou resultados técnicos quase miraculosos nas antigas megamáquinas como as sociedades egípcias e babilônicas e encontrará sua expressão mais plena, com a ajuda da tecnologia moderna, no futuro da sociedade tecnológica (Fromm, 1975, p.46).

 

Nessa interessante noção teórica de megamáquina, após a revolução industrial, a própria sociedade transforma-se em uma imensa e potente máquina, já o homem seguindo um caminho inverso, se tornam cada vez mais impotente e condicionado ao mero papel de “parafuso” desta gigantesca engrenagem sistêmica.

Fromm aponta dois princípios básicos que sustentam a megamáquina, tais princípios seriam uma espécie de filosofia subliminar que rege as ações comportamentais de todos os ajustados:

 

O primeiro princípio é a máxima de que algo deve ser feito porque é tecnicamente possível fazê-lo. Se é possível fabricar armas nucleares, elas devem ser fabricadas, ainda que possam destruir-nos todos (…) uma vez aceito esse princípio de que algo deveria ser feito porque é tecnicamente viável, todos os outros valores são destronados e o desenvolvimento tecnológico passa a ser a base ética.O segundo princípio é o da eficiência e produção máximas. A exigência da eficiência máxima conduz, como conseqüência, a exigência da individualidade mínima. A máquina social trabalha mais eficazmente, assim se crê, se as pessoas são reduzidas a unidades puramente quantificáveis cuja personalidades podem ser expressas em cartões perfurados. Essas unidades podem ser mais facilmente administradas por regras burocráticas porque não criam dificuldades ou provocam atrito. A fim de se atingir esse resultado, os homens devem ser desindividualizados em vez de em si mesmos (Fromm, 1975 ,p. 49).

 

Esse predomínio da razão técnica em nossa sociedade moderna é chamada por Fromm de “tecnocracia”; debaixo dessa regência ideológica de acordo com Fromm, a estrutura lógica de pensamento torna-se viciada, visando apenas o lucro e a eficiência.

O homem que é essencialmente um ser afetivo, é ensinado a todo o momento a negar-se como humano, sua estrutura emocional é totalmente desconsiderada, aprendemos recorrentemente que nossas emoções devem se restringir ao nosso mundo íntimo, afinal, o mundo “real” e “objetivo”, deve visar apenas à manutenção das instituições que formam nosso belo “sistema de coisas”.

Como diz Fromm, o homem se desindividualiza. Ele é levado a ser apenas aquilo que a grande máquina sistêmica “é”. Por isso, ao aceitar essa desindividualização ele acaba se desumanizando, ou se preferirmos nominar esse processo em termos marxista: ele se “coisifica”.

Ele deixa de ser o homo sapiens para se tornar o homo consumens. Um ser alienado que consome como louco, ao mesmo tempo em que é consumido pela sua loucura de consumir cada vez mais.

Por razão de sua alienação, ao querer reduzir suas ações mundanas ao aspecto meramente de “uso”, ele próprio e cada vez mais usado como “massa de manobra” para a sustentação do engenhoso sistema capitalista.

À medida que o homem aumenta seu contato com as “coisas”, ele se afasta das pessoas. Evidentemente, tal afastamento acontece como uma estratégia para proteger tudo aquilo que foi levado a acumular; quanto mais ele acumula, mais distante torna-se das pessoas.

Preso em uma “redoma de vidro”, o homem moderno se torna cada vez mais passivo e amedrontado, as diversas síndromes modernas, nada mais são do que manifestações simbólicas e estereotipadas de nosso vazio e defensivo estilo de vida.

Essa passividade crônica e dirigida, acaba por recrudescer o sentimento existencial de tédio, por conseqüência, o homem é levado a ficar cada vez mais preso em uma vivência tediosa e sem sentido existencial. Fromm ressaltou da seguinte maneira esse fato:

 

O homem, como um dente de engrenagem da máquina de produção, torna-se uma coisa e deixa de ser humano. Ele passa seu tempo fazendo coisas nas quais não está interessado, com pessoas nas quais não está interessado, produzindo coisas nas quais não está interessado; e, quando não está produzindo, está consumindo. Ele é o eterno lactente de boca aberta, “absorvendo” sem esforço e sem atividade interior, tudo o que a indústria que impede o tédio (e produz o tédio) lhe impinge –cigarros, bebidas, filmes, televisão, esportes, conferências – limitado unicamente pelo que ele pode dar-se ao luxo deter. Mas a indústria que evita o tédio, isto é, a indústria que vende engenhocas, a indústria automobilística, a indústria cinematográfica, a televisão etc, só pode impedir que o tédio se torne consciente. Com efeito, elas aumentam o tédio da mesma forma que uma bebida salobra, tomada para matar a sede, aumenta a sede. Por mais inconsciente que seja o tédio, este não obstante, continua sendo tédio (Fromm, 1975, p.55).

 

Não há como evitar o tédio existencial, o que verdadeiramente importa é como lidamos com tal sentimento. Aquele que consome desesperadamente, apenas revela nessa desmedida, um desespero inconsciente que se manifesta como compulsão; na verdade, o tédio existencial quando não enfrentado, transforma-se em angústia neurótica. Portanto, embora o consumo possa mascarar temporariamente a consciência de tal angústia, é impossível o represamento de tal sentimento por muito tempo.

A sociedade capitalista mudou muito desde que surgiu e se solidificou após a revolução industrial; inquestionavelmente o nível de conforto e desenvolvimento tecnológico é espantoso, porém, somos bem pagos para sofrermos em silêncio nossas crises existenciais em confortáveis poltronas e diante de incrementadas telas multicoloridas que cada vez mais perdem o potente efeito hipnótico de outrora.

A padronização da miséria humana é descrita da seguinte forma por Fromm:

 

“Empregadores e trabalhadores fumam os mesmos cigarros e dirigem carros que parecem idênticos, muito embora os carros melhores andem de modo mais macio do que os mais baratos. Eles vêem os mesmos filmes e os mesmos programas de televisão, e suas mulheres usam os mesmos refrigeradores” (Fromm, 1975, p.48).

 

Nesse pequeno fragmento supracitado, Fromm faz referência ao seu conceito de “conformidade autômata”, noção teórica que fala de uma patronização generalizada que o homem sofre; segundo ele, esse mesmo conformismo é confundido com a tão almejada “igualdade social”. Na verdade, o que ocorre nessa generalização abusiva é um nivelamento por baixo, ou seja; ninguém é ninguém e nada vezes nada é o que somos, o que importa é o rótulo que portamos.

 

A Construção do Novo Homem

Como já enfocado anteriormente, Fromm vê o homem individual como fruto de um processo de construção, ao mesmo tempo que, em seu aspecto coletivo, ele é parte ativa nesse processo de construção. Assim, no âmbito de sua liberdade, o homem como construtor deve ter como objeto final de sua obra, o seu próprio caráter sempre melhorado.

Devemos humanizar cada vez mais nossas atitudes frente ao mundo, isso significa desenvolver uma postura afetiva correta em relação a tudo aquilo que nos cerca.

Em toda sua obra Erich Fromm, com seu notável humanismo, tentou fixar uma mensagem muito simples de ser entendida, porém, muito difícil de ser praticada: ao humanizarmos nossa relação com o mundo externo, estamos humanizando no fundo, toda nossa vivência interna.

É importante ressaltarmos que quando Fromm fala da reconstrução do “homem”, ele usa o termo “homem” não no sentido particular. Isso é facilmente sentido na conclusão de seu livro “A Sobrevivência da Humanidade”:

 

Podemos salvar-nos e podemos ajudar a humanidade num renascimento do espírito do humanismo, do individualismo e da transação anticolonialista da América. (…) Os homens de boa vontade, ou antes, todos os homens que amam a vida, devem formar uma frente única para a sobrevivência para a continuação da vida e da civilização. Com todo o progresso científico e técnico que conseguiu, o homem acabará vencendo o problema da fome e da pobreza e pode tentar soluções em sentidos diferentes. Há uma coisa que ele não pode – é continuar os preparativos para a guerra que desta vez, levará a catástrofe. Ainda é tempo de prevermos a etapa seguinte da evolução histórica, e modificarmos nossa atitude. Mas se não agirmos logo, perderemos a iniciativa e as circunstâncias, instituições e armas que criamos assumirão o controle da história e decidirão nosso destino (Fromm, 1969, pp. 221-222).

 

A “descoisificação” da vivência humana é a única alternativa para nossa sobrevivência, tanto em nível particular, como em nível coletivo.

Fromm, diferente de Freud, era um otimista. Sua mensagem sempre foi a da esperança. Às vezes seus escritos ganham mesmo um tom messiânico ou profético, como um bom visionário ele sempre vislumbrou um destino feliz para a humanidade.

Infelizmente quando a esperança não é justificada pela história ela é apenas uma ilusão. A história humana não está fechada a novas possibilidades e, nunca estará, enquanto existir o homem. Porém, aquilo que o homem decidir escrever neste momento singularmente dramático de sua história universal, talvez (frente às circunstâncias atuais), não poderá ser escrito de novo.

Prof. Me. Marcos de Oliveira

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

FROMM, Erich. A Revolução da Esperança. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
FROMM, Erich. A Arte de Amar. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FROMM, Erich. A Sobrevivência da Humanidade. 4.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
FROMM, Erich. O Coração do Homem. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
FROMM, Erich. O Medo à Liberdade. 11. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
FROMM, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. 7 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.